50 tons de roxo

50 tons de roxo

O Senhor Roxo me aponta intensamente aqueles dois atrevidos olhos azuis, quase roxos.

Puta merda! Ele está me olhando! Respira fundo, Anastácia. Pensa em alguma coisa que não dá tesão. Qualquer coisa! Mickey Mouse! Pato Donald! Mickey Mouse! Pato Donald! Puta merda!

“Senhorita Steele, pedi pro RH das Empresas Roxo fazer um Contrato de Submissão pra gente começar nosso relacionamento”, ele diz. “Tem que assinar e reconhecer firma.”

Ele me empurra os papéis por cima da mesa do restaurante “Sade Sushi”, onde nós estamos almoçando. Pego os papéis com minhas mãos trêmulas e começo a ler.

Puta merda!

Puta merda!

“Belford…”, eu digo, pronunciando o primeiro nome daquele homem impetuoso, sexy e viril.

“Sabe, Belford”, eu continuo. “Não entendi essa cláusula 2: ‘a submissa se compromete a ter relações anuais com o dominador’. Achei que a gente ia fazer amor mais vezes…”

O senhor Roxo sorri, condescendente. 

“Não é ‘anual’, Anastácia. É ‘anal!’”

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

“Ah, não, Belford, anal não. Eu sou moça de família. Lá em casa a gente nem dança funk. Eu gosto é de fazer amor…”

Ele me fuzila com seu sorriso branquíssimo. 

Puta merda! Nunca vi ninguém fuzilar com um sorriso!

Puta merda!

Puta merda!

“Anastácia, querida, eu não faço amor, eu fodo”, ele responde.  

Puta merda! Que homem impetuoso, safado e sem vergonha! Puta merda! Se concentra, Anastácia! Puta merda!

Volto à leitura do Contrato de Submissão. 

“Belford, meu querido…”, eu digo, “esse item aqui… parágrafo 11 da cláusula 2.9… ‘o Dominador pode açoitar, espancar ou castigar fisicamente a Submissa como julgar apropriado’. Tem certeza de que o sindicato permite isso?”

O senhor Belford Roxo franze o cenho, ergue as sobrancelhas, me dá um sorriso convencido e me lança aquele olhar atrevido dele. Como ele faz tudo isso ao mesmo tempo, o garçom pensa que ele está sofrendo um AVC e corre até a nossa mesa para socorrê-lo. Belford o manda embora com uma gorjeta de 50 reais.

Puta merda! Puta merda!

“Anastácia, o que eu faço com você?”, o Senhor Roxo diz com seu olhar. 

Ele sorri, e eu coro.

“Eu preciso pelo menos te dar umas palmadas, Anastácia… A gente tem que acertar isso. Só um tapinha não dói…”

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

“Tapinha?! Ah, não, Belford, aí não dá! O que eu falo pras minhas amigas feministas? A Suellen, inclusive, acaba de me emprestar um livro da Simone de Beauvoir…”

O senhor Roxo fecha seus dois olhos lânguidos e olha para cima, suspirando.

Puta merda!

Como ele consegue olhar pra cima com os dois olhos lânguidos fechados?!

Puta merda!

Puta merda!

Volto à leitura do contrato e chego ao parágrafo 37, alíquota B da subseção 4. 

Puta merda!

“Belford, amorzinho…”, eu digo. “Essa coisa aqui de enfiar consolos e brinquedos… olha, isso aqui eu tenho certeza de que a CLT não deixa…”

“A CLT impede a empregabilidade, Anastácia”, ele responde, seco, com seu sorriso lindo de macho alfa plus size extra large.

Quando escuta essa resposta, minha deusa interior sai correndo e se esconde atrás do sofá. Eu a chamo de volta e ele se aproxima assustada para se acomodar ganindo dentro do ego do meu ser. Retomo a leitura do contrato.

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

“Belford, honey”, eu digo. “Esse item B52 do parágrafo 18, alínea C que fala de surra de vara… você pode ser mais específico sobre esse negócio de vara? Porque tem vara que eu gosto, mas tem vara que que eu não gosto…”

O Senhor Roxo pisca as sobrancelhas, ergue os olhos azuis e sorri com seu queixo petulante. O garçom imagina que dessa vez só pode ser um AVC, mas ele é detido pelo sorriso frio na testa de Belford. 

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

Como alguém sorri com a testa?!

Não tô entendendo mais nada!

Respira, Anastácia, respira. Ele é o homem dos seus sonhos. Ele só é bruto e cruel, mas é sangue bom e muito rico. Principalmente muito rico. Pense nisso, puta merda!

Pego uma caneta na bolsa para assinar o contrato, quando ele diz com sua voz de homem másculo e também muito masculino:

“Só tem uma coisa, Anastácia. Você precisa parar de falar ‘puta merda’ em público. Isso é muito desagradável e, além disso, ninguém mais fala ‘puta merda’.”

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

“Mas, Belford, você não entendeu… eu não falei ‘puta merda’, eu só pensei. Quando o texto do livro está em itálico, eu estou pensando, entendeu? Tipo assim: puta merda! Tá vendo? Eu só pensei. Eu falei ou só pensei?! Acho que eu falei. Puta merda! Puta merda! Puta merda!”

Belford Roxo me encara com angústia, absolutamente alquebrado, num sofrimento agonizante, refletindo o que ele sente por dentro do seu eu interior mais profundo. O garçom fica grilado, mas não se mexe. 

“Anastácia…”, ele diz com sua voz de barista. “Esquece o contrato. Isso não vai dar certo. Seu estilo literário é péssimo, você fala ‘puta merda’ toda hora e, seguinte, vou dar a real pra ti: não é voz de ‘barista’, sua anta! É voz de ‘barítono’! Voz de barítono, porra!”

Puta merda! Puta merda! Puta merda! Puta merda!

O Senhor Roxo se levanta e sai apressado do restaurante. Fico sozinha na mesa com minha deusa interior toda encolhida dentro do meu inconsciente desolado.

O garçom se aproxima e traz a conta. 

“Vai ser em cheque ou cartão?”, ele pergunta.

Eu dou uma espiada no valor.

Dois mil reais, fora o serviço!

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!

Puta merda!