Como Dostoiévski explica o comportamento atual

Como Dostoiévski explica o comportamento atual

O filósofo grego Diógenes de Sínope, durante o dia, caminhava com uma lanterna acesa na mão entre as pessoas e dizia: “Procuro um homem”. Ele foi o fundador da escola cínica. Dessa façanha histórica, não poderia resultar algo diferente. Se vivesse nos dias atuais, poderia usar um holofote em vez de uma lanterna e vagar pelas ruas de quaisquer cidades em busca de experiências, possivelmente, muito peculiares. Mesmo assim, permaneceria cínico, em busca de seu homem. A busca metafórica de Diógenes pode ser transposta para os tempos atuais sem perder sua essência irônica. Dostoiévski faz referência ao filósofo em “Os Irmãos Karamázov”, claramente para ilustrar o comportamento dos homens de sua época. O autor analisa um dos irmãos do título, Dimitri Karamázov, que, na narrativa, comenta sobre si mesmo: “Durante toda a minha vida, me atormentei porque almejava a nobreza… procurava com a lanterna na mão, com a lanterna de Diógenes”.

O acerto do escritor, amplamente reconhecido, é sua profunda compreensão da alma humana. Sua abordagem no citado romance é uma observação minuciosa da natureza humana, tratando de temas absolutamente relevantes. Questões como religião, vaidade, ganância, relacionamentos e a capacidade da dissimulação, feita de forma deliberada e astuta, que pode distorcer a percepção de determinados eventos, são o foco do escritor russo. Sobretudo, o discurso dostoievskiano que trata da humilhação e do orgulho, conclui que ambos são sombras do passado, enraizadas na formação dos valores humanos. Além disso, a história clássica sobre o Grande Inquisidor é uma reflexão profundamente atemporal acerca da necessidade de mitos.

Dostoiévski

Hoje, a humanidade ainda se comporta de maneira semelhante às personagens de Dostoiévski. E a “lanterna” de Dostoiévski, embora menos cínica e mais incisiva que a de Diógenes, quando usada corretamente, revela as camadas da natureza humana. É possível mesclar a profundidade avaliativa da obra com a sagacidade cínica de estilos literários como a crônica, revisando os comportamentos contemporâneos com drama e humor. E, quem sabe, possamos iluminar a face de um simulacro do homem que Diógenes buscava. A seguir, apresento oito crônicas baseadas na obra “Os Irmãos Karamázov” que exploram essa ideia.

Os russos

Se eu fosse Fiódor Pávlovitch, o demônio saltitante, arrebentaria-me contra um muro e, em seguida, colocaria a culpa em alguém muito próximo. Riria do meu infortúnio como uma pobre vítima, cheio de autocomiseração, envolvido em um teatro ridículo e sem sentido, para fazer crer a todos à minha volta que sou, inegavelmente, desventurado e engraçado ao mesmo tempo. Um palhaço, como a maioria quer entender. Não é impossível ser contraditório.

Qual Karamázov sou eu? Pergunta-se nos grupos que gostam de se divertir com comparações sem sentido, mas que causam diversão e excitação. Nesse caso, é algo para uma pequena confraria de entendedores. Desde o incauto pouco instruído, passando pelo santo casto que abdica constantemente dos prazeres do corpo, até o intelectual capaz de subjugar a cultura e a política de seu tempo, todos nós somos, em parte, palhaços, mesmo sem a intenção. Ou seja, ainda que sejamos um Karamázov específico, temos um pouco do velho Pávlovitch encrustado em nós, em nosso íntimo diverso e complicado.

Qual é a função do primeiro parágrafo deste curto texto despretensioso? Dizer que o culto, por vezes, desvincula-se de suas convicções para se armar de superficialidades convenientes e que o ignorante se apoia em uma ideia para tornar-se, mesmo que em particular e por curto tempo, uma potência. Além disso, o santo pode compreender os caprichos e vaidades dos mundanos, utilizando o drama e a comédia em suas notas de instrução. Em todas essas situações, as personagens recorrem, inequivocamente, ao ridículo.

O delírio de Mítia

Uníssono! Em uníssono. Que todas as mulheres pronunciassem, simultaneamente, num único tom que preenchesse, a palavra “Chardonnay”, não foi surpresa. Em contrapartida, menos notado e, portanto, negligenciado, foi um grupo de homens idosos e falastrões pedindo taças repletas de Merlot, quase transbordando, para assim fazer parecer que bebiam e desdenhavam.

Dostoiévski

Após o vinho, escandalosamente roxo, ser derramado por todos os cantos, os pares se entenderam. Por conta do álcool, da lua, do sereno lascivo e do vento fresco, acomodaram-se sob o céu descoberto, pois o local abrigava um Sarau. Uma reunião de líquidos oscilantes e nenhum poema, mas era pura poesia.

Ivan compreende o parasita (seu diabo elegante).

Só ocorreu uma vez! Curiosamente, senti que era mais do que uma epifania. Algo como uma descoberta inesperada, uma maravilha. Assim são os encontros com grandes conquistas. Primeiro, surge a dúvida. Caminha-se cautelosamente, como quem anda sobre ovos; depois, assegura-se uma posse firme da inovação. Eis a descoberta completa! Validada pelo inventor e solidamente confirmada por testes mentais decisivos. Truque do sonho! Esse é o nome da ideia. No sonho, outro imagina coisas desastrosas, organiza a tragédia. Você sabe o que ele simboliza, mas não o que ele pensa. Por um momento, o sonho o envolve e limita sua compreensão. De repente, lembra-se de que o sonhador sabe tudo. Você e o outro são um só, e o que ele pensa, você também sabe. Truque do sonho! Aconteceu uma vez e nunca mais. Proporcionou-me uma sensação eletrizante de ter alcançado algo relevante. É uma boa invenção ou não? Silêncio (mental). Qual sua utilidade? Absolutamente nenhuma!

O enfado

Se Kólia, o garoto prodígio, permitisse a si mesmo mostrar sua tese ao seu interlocutor curioso, Aliócha, talvez percebêssemos o poder de sua oratória precoce e a eloquência de seu ponto de vista, sobretudo a respeito de Deus. No entanto, o desânimo o tomou de assalto. E, com ele, veio o enfado. Catastrófico.

É assim que se estabelece o perturbador silêncio. Mas o enfado é, justamente, um sentimento oriundo das discrepâncias. Da diferença intelectual entre falante e ouvinte. Do desnível, primitivamente obscuro e escandalosamente óbvio, percebido após um breve intervalo de interação. Os interlocutores, por razões misteriosas, se distanciam. Como Kólia, são sociáveis propensos à frustração. Inúmeras vezes!

Obs.: Não considere Kólia intelectualmente superior a Aliócha.

Viva Khokhlakova!

Não é incomum, especialmente em obras como “Os Irmãos Karamázov”, nos depararmos com a palavra “atabalhoada”, seja escrita ou proferida. Na literatura, seu uso é preciso, assim como deve ser com todas as palavras, sempre que a estrutura do texto exigir uma ordem sistemática. Nesse sentido, como proclama o seu significado revelado, todos nós manifestamos esse tipo de comportamento. Com poucas exceções, essa é a natureza humana: passional.

Você mataria por três milhões de reais? Não responda em voz alta. Calma! Pensar ainda não é crime. Mas, garanto, se a proposta fosse feita, a resposta viria atabalhoada, com imprecisões, ordem trocada das palavras, sudorese e gagueira. “Resisto, mas mataria” ou, melhor, “mataria, mas resisto”. Bem, vejamos: atabalhoados somos todos. E agora, público?

Um mujique

Sentado em uma mesa isolada, num canto do bar, solitário e distante dos demais, Alex reflete sobre seu dia. Ele expande sua reflexão para sua vida inteira. Está à beira de um colapso, sofrendo de uma perturbação similar àquela descrita pela Senhora Khokhlakova, cuja generalização sugere que é um mal que aflige toda a humanidade: “você, eu, todos estamos com perturbação” — ela diz. Porém, o estado de Alex é avançado. Seus nervos estão à flor da pele, sua face treme, sua boca está seca, suas mãos tremem e suas pernas parecem atrofiadas. Ele toma mais um gole de sua bebida, mas a secura persiste. A sensação amarga que subiu do estômago ao esôfago torna-se mais intensa e destrutiva. Ele sente uma explosão de raiva iminente. Ao seu redor, ninguém o nota. É tão invisível quanto muitos outros. De soslaio, ele observa uma dançarina que se move entre as mesas, oferecendo sua companhia em troca de dinheiro. Irritado, ele se levanta. Falta pouco para cometer um ato impensado, mas é o que ele quer. Está tomado por essa perturbação. Seu plano está formado, falta apenas executá-lo. Retira uma pequena arma do bolso de sua calça e espera. O primeiro homem a se aproximar da mulher será o alvo de sua raiva contida. Trata-se de um senhor de meia-idade de boa aparência. O homem se levanta para beijar a mão da dançarina, mas é interrompido. Antes que a mulher possa reagir, um disparo ressoa, fazendo os vidros vibrarem, e o corpo do senhor cai ao lado dela. Algumas gotas de sangue mancham sua mão, cujo tom quase combina com o de seu esmalte.

O atirador é rapidamente imobilizado por outros três homens, enquanto alguns ligam para a polícia. Entre os presentes está um psiquiatra discreto, que avalia a situação e conclui: “Ele sofre de uma perturbação”. As pessoas ao redor observam o rosto contorcido do assassino, examinando-o de perto, repetidas vezes. Todos o perdoam.

De gustus nos est disputandum

Na véspera de sua morte, o condenado refletia sobre a alegria de se reconhecer vivo. Ainda que poucas horas o separassem de seu final e ele não pudesse esperar ser libertado nos últimos instantes, como o famoso escritor russo Dostoiévski, sentia-se grato por existir por mais algum tempo. A sua alegria consistia, unicamente, no fato de poder ponderar sobre sua existência, antecipando a morte, e de ter a oportunidade de não ser surpreendido por ela, como em um acidente, sem ter a chance de refletir sobre questões tão profundas. Falou a si mesmo: “Só o fato de eu saber que existo já é uma vida inteira”. Sorria sozinho, com os lábios mornos e tortos, mas sorria.

Dostoiévski

Quando questionado sobre sua última refeição, disse que comeria o que lhe trouxessem. Para ele, não existia comida ruim. Naquele momento, era existencialista, como Mítia Karamázov. Valorizava sua existência. Sabia que era breve, mas, ainda assim, revisada, recriada. A caminho do local da execução, identificou-se com Meursault, de Camus, e gritou aos ventos que não sentia: “Estou pronto para reviver tudo”.

Final de tarde

“Percorreu a habitação, sentou-se à janela pequena e mandou preparar o samovar.” Se eu ganhasse um real a cada vez que os russos mencionassem o samovar em sua literatura, eu… Bem, não preciso detalhar! É óbvio que o chá será servido exatamente às cinco, como de costume. A água estará na temperatura ideal e nosso convidado ficará satisfeito. A leitura será retomada às seis. E continuaremos a descobrir mais sobre a história de Dubrovski e seu desfecho, mesmo com o romance incompleto. Não somos ingênuos. As conversas acontecem em círculos, por vezes cansativas. Alguns discorrem por longos períodos. Outros se calam para ouvir. Há palavras que ressoam e ganham significado. O convidado nos guia, alternando entre explicações e sugestões. O que realmente queremos? Compreender a importância de um samovar? Claro que não! No fundo, esperamos encontrar, nas palavras de Púchkin, a essência dos Karamázov.

Excertos Dostoiévski