31 microrromances em 31 dias

31 microrromances em 31 dias

Desafiamos o escritor Edival Lourenço, ganhador do Prêmio Jabuti de Romance, a escrever uma série microrromances, com até 280 caracteres, sendo um por dia, durante o mês de janeiro. Embora não seja reconhecido como um gênero literário — sendo associado às tendências de vanguarda e ao minimalismo — as micronarrativas sempre fizeram parte da história da literatura. Nomes como Tolstói, Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Julio Cortázar e Ernest Hemingway já incursionaram pelo tema. No Brasil, o pioneiro foi o escritor Dalton Trevisan, com o livro “Ah, É?”, de 1994. Para ser um microrromance, não basta ser uma história pequena. É preciso trazer os elementos essenciais de uma trama, que despertem a participação ativa do leitor, mobilizando sua memória e criando, em sua imaginação, uma história ampliada, de modo a despertar-lhe o prazer estético.

Fotografia: Ana Maria Tone / Shutterstock


1 de janeiro
O bandido casual

Ao passar em frete ao sobrado rosa, ele ouviu gritos de socorro. Entrou. Tomou a arma do bandido e o rendeu sob a mira. O morador ligou pra polícia, que chegou atarantada, e metralhou o suspeito. O bandido mesmo saltou fora e o passante solidário entrou para a estatística.


2 de janeiro
O paradigma do homem

Seu sonho era cumprir o paradigma do ser completo: plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Não necessariamente nessa ordem. Mas era um cara de pouca sorte: a árvore produziu flores do mal, o livro deu lições de perdição e o filho era um homem sem qualidades.


3 de janeiro
O dilema do mentiroso

Messias era um mentiroso compulsivo. Mentia sobre o amor, sobre a guerra e sobre as coisas triviais. Pegou diploma de desacreditação. Certa vez ele mentiu que era Deus. Em seguida, jurou de pés juntos que era mentira. Já era tarde.


4 de janeiro
Tragédia em andamento

— Quem diria que nosso tio pudesse fazer um papelão desses?!
— Pois é. Nossa família não merece passar por situação tão vexatória.
— Esse fato terá consequências terríveis.
— A ordem é esquecer. Lembra-se?
— Esqueci.
— Esqueceu de lembrar?
— Não. De esquecer.


5 de janeiro
O sofista quântico

O tio ensinava lógica quântica ao sobrinho:
— Presta atenção: Se uma borboleta bate as asas na China e provoca um temporal no Brasil, se 2 X 2 pode ser 5 ou 19, se um galo pode ser um boi, logo…
— o senhor pode ser um viado!


6 de janeiro
Metamorfose

O amor ao mar e o ódio à terra cresciam. Trauma da troca do útero pelo colo seco. Na última pescaria, ele acordou de um sono agitado. Com as barbatanas, livrou-se das vestes. Barco à deriva. Mergulhou. Primeiro peixe de óculos de grau e dentes postiços!


7 de janeiro
Oito pães e uma escopeta

Fim do dia, ele pediu bule de café, oito pães e uma escopeta. Montou campana, à espera do meliante. Três da matina a porta foi arrombada. O arcebispo puxou o gatilho. O ladrão caiu com um rombo na testa. Com o baque, o Cristo de gesso soltou da cruz e se despedaçou no chão.


8 de janeiro
A noiva à ré pendida

No chá de panela, ganhou um presente. Abriu com parcimônia e método. Diante da curtição das amigas, deliciou-se com ele até se fartar. Semana seguinte, comparando com as credenciais do noivo, perante o altar e familiares comovidos, na hora H, disse não.


9 de janeiro
A ordem e o exemplo

Denunciaram furto ao velho bandeirante, que mandou uma comissão apurar. Sopraram-lhe o nome do gatuno. Sem hesitar, fez preparar o patíbulo numa árvore. Ao pôr do sol, longe de casa, aqueles homens rudes assistiram, pasmados, ao enforcamento do único filho do comandante.


10 de janeiro
Inês não é morta

Espontânea entre hipócritas, era a vergonha da família. Um dia, caiu morta. Aliviado, o pai mandou sepultar com as joias. O coveiro fez um ralo tapume pra roubá-las. À noite abriu a campa. Inês, esfolada, correu de volta pra casa. Ao vê-la, o pai a esganou e devolveu pro túmulo.


11 de janeiro
A ordem, o caos e a ordem

Sitiantes, filha de 13 anos. O leiteiro buscava leite e levava a garota pra escola. Teve caso com ela. O pai a expulsou de casa. Sob impacto, a mãe morreu de AVC e o pai de infarto. A esposa do leiteiro adotou a menina como filha e amante. E o marido foi jogado no olho da rua.


12 de janeiro
Sob fogo cerrado

Ao esfriar pelo primeiro, amasiou-se com um segundo e um terceiro. Exigiu deles a morte do primeiro. Finda a adrenalina, esfriou pelos dois. Exigiu desempate por duelo. Houve mortes simultâneas. Agora ela vive em labaredas com um quarto. E, sob o travesseiro, guarda um punhal.


13 de janeiro
O álibi do padre

“Ajuntai tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não os consomem, e os ladrões não minam nem roubam.” Vinha imbuído desse mandamento. Mas a Máquina do Mundo arrocha e cria urgências imediatas e tudo se inverte de repente. Não vi a hora em que troquei o eterno pelo hodierno.


14 de janeiro
Presságios

Amanheceu encantado pelo sonho. Corria por uma estrada infinita, túnel dentro da mata. Uma águia branca reluzente voava a seu lado. As penas dela foram transferindo-se para seu corpo. Emplumado, voou com deleite. Mais tarde, teve sintomas. E o exame deu positivo para Covid-19.


15 de janeiro
A construção do universo

Num lugar, juntou tudo para a construção. Começou sem projeto e seguiu em ritmo alucinado. Muito material ainda solto no ar. Antes que elogiassem ou pusessem defeito, deu a obra por conclusa. Tempo depois, arranjou uns inquilinos bisonhos para ocupar um dos puxadinhos.


16 de janeiro
O segundo naufrágio

Mr. Hine, marujo exímio, sofreu naufrágio. A duras penas, superou ondas, sede, fome e canibais. Três anos depois, chegou em casa. Ao aproximar-se viu uma criança, que nascera na ausência. A esposa, enfim, a família reconstituída e contente. Seu segundo e definitivo naufrágio.


17 de janeiro
O terrível dilema de Ivan

Pe. Ivan, soube no confessionário: o menino Bias fora morto por Jonas. O padre largou a batina para ser Juiz na comarca. O julgamento caiu-lhe por sorteio. Lendo o processo, Dr. Ivan, percebeu não haver provas. O assassino sairá ileso. E agora vive enorme crise de consciência.


18 de janeiro
As sobreviventes da ilha de pedra

Depois da luta insana pela vida, ambas se viram na ilhota hostil, sem comida. Água, apenas a que suava da pedra. Em comum, serem lactantes e terem filhos mortos. Por 30 dias sobreviveram dos seios uma da outra e lambendo água da rocha. Enfim, passou um bote. Apenas uma vaga.


19 de janeiro
O herói latente

Nasceu normal e foi ficando indiferente. Após dezenas de especialistas, os pais conformaram-se com o autismo. Sem dizer palavra, aos quatro anos foi inscrito no jardim. Continuou mudo. Um dia, olhou fundo no olho da mãe e suplicou: — Mamãe, matricula eu na escola de heróis?


20 de janeiro
Os jogadores

Célio e Thomaz perderam tudo no jogo. Fissurados pela jogatina, apostaram a própria liberdade. Quem perdesse viraria escravo do outro. Num jogo de melhor de três, Thomaz tornou-se propriedade de Célio, que já anunciou os rins do escravo, pensando em revanche, com um terceiro.


21 de janeiro
O ódio que dorme nos punhais

Vem dos tempos bíblicos o ódio humano que impregna o metal desses punhais. Refundidos vezes incontáveis, são instrumentos de duelos ao longo das eras. Pelos seus gumes, correram rios de sangue. Descansam na vitrine, sedentos, à espera de mãos hábeis para mais uma fatal peleja.


22 de janeiro
O grito de incêndio

Gêmeos, viviam sós. Cogitaram arrumar esposa: uma para os dois. Derrubaram mata. Na queima, dividiram os lados. Um grito marcaria o início do fogo simultâneo. Um deles viu ninho de arara. Subiu no tronco para salvar os filhotes. Engastalhado, não teve opção, a não ser gritar.


23 de janeiro
Ingratidão renal

Penava 10 horas ao dia anexo à máquina de diálise. Depois de anos na fila de doação, André descobriu que a própria esposa era compatível. Comovida, ela doou-lhe um rim. Ele reouve a saúde, o trabalho, a elegância e a vaidade. Agora, largou a mulher pela bela e jovial enfermeira.


24 de janeiro
Complicação na largada

Leio o primeiro parágrafo para escrever o segundo e é sem surpresa que o percebo frívolo e patético. Entre raivoso e resignado, embolo o papel e lanço ao lixo. Há semanas sem empreender a largada. É a história de um romance inexistente e uma resma de papel que passa a inexistir.


25 de janeiro
Uma pessoa apócrifa

Sentou-se à mesa para escrever a história que o perseguia há décadas. Focou na trama e na linguagem. O sol cruzou o céu. Os arcos da tarde ergueram-se no horizonte. Sentiu-se estranho. Era outro ou até apócrifo. Talvez tenha sido trocado na maternidade. A história esvaziou-se.


26 de janeiro
A inocência contra o mal

1212, a Igreja, num surto de inocência, organizou a Cruzada de meninos para combater o Islã, na Terra Santa. Munidos de fé e armas bisonhas, partiram da Europa aboletados em navios precários. Apesar da expectativa de vitória dada pelo Papa, as mães nunca mais viram seus filhos.


27 de janeiro
Evolução e barbárie

Ocorreu que a humanidade cansou-se das virtudes da civilização e saiu em busca da barbárie primordial. O azar é sermos contemporâneos desse tempo estranho. As ferramentas modernas, de alto impacto, estão sendo utilizadas nas ações da barbárie. Uma tragédia em aberto.


28 de janeiro
O negacionista

Certo país, em momento de estranhezas, quis para seu líder um que duvidasse das verdades comprovadas: Duvidou que a terra fosse redonda, que a ciência, educação e cultura fossem úteis e até que o sistema democrático estava certo. Por fim concluiu que a humanidade era supérflua.


29 de janeiro
Os mercadores de indignações

O Governo montou postos de compra de indignações em todo o país. Formaram-se longas filas e indignações genuínas foram trocadas por pontos para aquisição de bugigangas. Pouco tempo depois, os poucos indignados restantes foram mortos a paulada. E o país embicou no fosso.


30 de janeiro
Os combatentes de ameaças inexistentes

Num surto de revelação, uma das vozes lhe passou a dever de salvar o país de uma ameaça inexistente. Anunciou aos quatro ventos e arregimentou os loucos crédulos da missão. O país, que vivia atormentado, adquiriu mais um tormento: combater os combatentes de moinhos de vento.


31 de janeiro
O portador de necessidades urgentes

Trabalhou 20 anos no sítio. Um dia pediu para ser dispensado, pela indenização, alegando necessidades. Após o acerto no sindicato, pegou a grana viva e marchou, a pé, para a Toca do Amor. Jogou a fortuna sobre a mesa e exigiu da cafetina prazer integral, enquanto a grana durasse.