A suposta traição de Capitu e os reflexos de nossa sociedade machista que não evolui

A suposta traição de Capitu e os reflexos de nossa sociedade machista que não evolui

De antemão, deixo claro o firme posicionamento de que Capitu não traiu Bentinho. Sem suspenses, sem rodeios e abrindo mão da liberdade interpretativa dada a todo leitor da imortal obra de Machado de Assis. É que, como é regra geral na História, o enredo é guiado por um ser humano do sexo masculino, cujo apelido revela sua paranoia e reflete uma das mais sobrepujantes nocividades sociais, qual seja, o machismo nosso de cada dia.

Percebe-se que, no sentido denotativo, “Casmurro” significa alguém teimoso e obstinado — o famoso “cabeçudo”. O livro é narrado em primeira pessoa, o que já demonstra desde logo sua parcialidade e visível interesse em demonstrar um ponto de vista consolidado. Veja bem: a pessoa que nos entregou toda a história está embebedada de ciúmes e cega nos sentimentos. Advogado, Bento Santiago manipula a narrativa quando lhe convém e conta a história na velhice, já distante dos acontecimentos.

O ciúme de Bentinho ao longo do livro é doentio. Em determinado capítulo ele chega a expor seu ciúme do mar, por conjecturar situações que poderiam estar passando pela cabeça de Capitu ao admirar o horizonte inanimado. Demonstrava descontrole emocional diante dos braços nus da esposa e de muitas outras coisas superficiais. Em verdade, não há ciúme, mas posse: um sentimento de poder de fato sobre uma coisa, decorrente do direito de propriedade e que ainda hoje é causador de violência e morte no âmbito familiar.

Mas Capitu não era coisa; era mulher, e das mais vanguardistas. Era pobre, inteligente e sagaz. O real problema é que as virtudes feministas causam invariavelmente espécie em homens retrógrados. Os mais conservadores tendem a achar a mulher inferior, submissa e dependente. Não à toa, o direito brasileiro determinava a perda de parte da capacidade da mulher enquanto casada. O homem, inclusive, podia autorizar ou não a sua contratação para o trabalho. Não era brincadeira.

Vivemos em um período em que as mulheres seguem vistas pelo viés da objetificação. Discursos legitimam ações violentas culpando as próprias conquistas de direitos por elas. Há inclusive mulheres que assim pensam, numa deturpação do feminismo que expõe no seio social pessoas que confundem as mulheres com prêmios, necessariamente belos, para acompanhar os homens: elas ainda são validadas pela aparência e pela juventude.

Na intencional ambiguidade construída por Machado há muito espaço para teorias. E, infelizmente, há um indiscutível liame unindo aquela sociedade brasileira, centrada no homem “varão”, e a atual: a perpetuação irracional do machismo e do sexismo. Ainda que a letra fria da lei atribua direitos iguais aos dois gêneros, é certo que vivemos rodeados de muitos Bentinhos, que enxergam “olhos de ressaca” onde querem e diminuem as mulheres como objetos de seu patrimônio. Oremos por mais Capitus.