Não aprendemos afinal onde fica Samarcanda

Não aprendemos afinal onde fica Samarcanda

Pintura: Leonid Afremov

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Houve uma mulher em minha vida. Bem sei, houve mulheres na vida de todos os homens: nenhuma novidade aqui, nada de novo sob o sol. Mas somos capazes de reconhecer as implicações profundas desse fato? Quem, na correria da vida moderna — esse eterno clichê do qual sempre reclamamos —, pensa no que ganhou ou perdeu ao fim de uma história de amor? E pode ser até pior: muitas vezes não percebemos a possibilidade de um amor quando ela surge, como as pequenas epifanias do Caio Fernando Abreu, e a rechaçamos, tristemente a rechaçamos.

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Quando eu a conheci, já era amigo de seus pais, mas não tinha ideia de sua existência: ela morava em outro país e eles nunca mencionaram o fato de que tinham uma filha. Um dia, no nosso costumeiro encontro de sábados, cheguei ao bar de sempre e lá estava ela com os pais e os amigos comuns. E eu estava acompanhado de uma namorada quase noiva.

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O que senti? Reconstruímos sempre o que passou com as sensações do presente. Mas eu, desde aquele dia, pensei muitas vezes no que ocorreu e é sempre a mesma imagem que me vem à lembrança: fiquei tomado por sua presença. Lembro-me do vestido que ela usava, o tamanho do cabelo, os gestos, o exato lugar em que se sentou. Mas não me lembro de nenhuma, absolutamente nenhuma conversa que tenha ocorrido naquela mesa: não sei o que disse a ela ou aos amigos, não sei o que ela conversou. Parece ter existido só a completude da sua existência até então desconhecida para mim e a partir dali mudando o curso de um dia — uma vida — que começara como outro qualquer.

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Eu a quis com todas as minhas forças. Descobri ridiculamente (não só as cartas de amor são ridículas) que o coração realmente bate descompassado quando vemos alguém que desejamos. É fato: eu chegava a ficar distante dela alguns passos, com medo de que minhas aflitas palpitações fossem ouvidas.

Não houve tempo para estratégias, planos, caras ou tipos. Minha urgência fez com que eu me mostrasse como sou (mostrei-me e a assustei). Aquela outra vida precisava estar na minha vida. E a persegui, esse é o termo, por uns dois meses. Ela tinha também um namorado — já eu tinha má fama. Ela se esquivou, eu avancei. Lutei por ela como se luta pela própria vida num momento crítico — essa também é a expressão exata —, e hoje, quando estou tão cansado das agruras de minha vida que mal consigo me alçar à altura do chão, lembro-me daqueles dias com orgulho: à moda de Churchill, that was my finest hour.

Levei alguns foras, mas a coisa engrenou. E vimos que isso era bom, como está no Gênesis.

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Conhecem aquele poema do Ferreira Gullar, “Traduzir-se”? Era — é — o seu retrato perfeito.

Pois ela, que era ninguém e era todo mundo, que era multidão e solidão, que ponderava e delirava, que era permanente e de repente, cercou a minha pobre, quieta vida com a sua.

Sim, eu, tendente à melancolia, retilíneo, atarefado, algo excessivo, às vezes tentando construir grandes coisas de situações mínimas, mas ao fim e ao cabo contentando-me em inspecionar o mundo do alto das minhas certezas, vi-me confrontado por alguém que, apenas pelo simples motivo de não ser o que eu era, já era melhor do que eu era (sou).

Éramos, então, diferentes. Depois, claro, descobrimos afinidades e, apesar de tantas diferenças, elas eram também muitas. E de novo vimos que isso era bom.

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Aquele outro ser que não era eu tomou conta de mim. Orgulhoso, fingi que ainda estava no controle. Arrependo-me: devia ter tido isso a ela.

Ou talvez isso não importe muito, pois ela também me disse pouco, não era boa com as palavras, era tímida ou se sentia diminuída por conta dos meus excessos. Mas todo o seu corpo se expressava e então as palavras podiam deixar de ser ditas. Ah, o seu corpo.

Mesmo tímida, ela não era, contudo, mulherzinha em algumas situações: não mandava cartões de amor, não era meiga, dizia palavrões. Mas quando eu a premia contra a parede, ela se derretia e então a mulher vinha à tona. Ah, as paredes. Era bom.

Construímos a nossa vida. Acho até que conseguimos um bom meio-termo entre nossas divergências e comportamentos conflitantes. Nos bares, por exemplo, eu enchia a cara e ela, depois, dirigia o carro e me repreendia. Comprando roupas, ela fazia as escolhas, eu carregava os pacotes. No cinema, ela via o filme e o comentava, enquanto eu tentava cochilar sem que ela percebesse. Na minha casa, eu trabalhava e ela assistia a filmes, e de vez quando eu levava água para ela e verificava se continuava bem servida. Em imprevistos, eu mentalmente pensava numa solução para o novo problema, já ela verbalizava o que ambos sentíamos: “Porra, caralho!”. E querem saber? Era bom.

Também em viagens encontramos certo equilíbrio. Gostávamos de museus. Eu fazia o percurso em duas horas e a aguardava na cafeteria, por mais quatro ou cinco horas, lendo um livro comprado na loja do próprio museu. Também visitávamos muitas livrarias: ela procurava livros de psicologia, eu buscava literatura — e mais tarde, quando ela tentava sorrateiramente se apropriar dos meus livros, eu era obrigado a comprar todos em duplicata para que ela também os tivesse (ah, a tarde em que, depois de longos amores, li em voz alta para ela…). Esse nosso modus vivendi, percebo agora, tinha as engrenagens em perfeito funcionamento: dessas pequenas concordâncias e discordâncias é que uma vida em comum pode ser construída, nada de grandes planos, nada dos meus excessos costumeiros, apenas a exata, a rigorosa força em comum para as coisas pequenas e cotidianas.

E havia — há — ainda nela uma cumplicidade com tudo aquilo que é vivo, pessoas, animais, plantas, e a força disso se espraiava ao seu redor e todos nos sentíamos mais integrados a uma ordem superior qualquer. Ah, essa ordem superior qualquer…

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Querendo tanto o que ela era, quis então mostrar o que eu também era, talvez como uma tábua de salvação para o meu afogamento iminente (mas eu já estava fragorosamente perdido). E para mim o mundo só se ordena com livros, museus e viagens — tudo aquilo que me tira da minha mediocridade diária.

Então viajamos. Bebemos vinho do Porto à beira do Douro, ouvimos fado em Lisboa, lemos Thomas Bernhard numa tarde preguiçosa, ficamos boquiabertos com os amarelos de Van Gogh em Amsterdã, vimos a barreira de orientais tapando a Mona Lisa no Louvre, fizemos do d’Orsay o nosso museu preferido, compramos livros na Shakespeare and Company, rezamos na Notre-Dame, espantamo-nos com os vitrais de Sainte-Chapelle, ouvimos música clássica na Madeleine e jazz numa cave. Mas não dançamos flamenco na Andaluzia, não demos comida aos pombos na Piazza San Marco, não descobrimos juntos uma obscura aldeia irlandesa, não nos cansamos nas Galerias Uffizi, não nos perdemos num bazar em Túnis, não ouvimos o muezim conclamar às orações em Fez, não compreendemos com esforço conjunto o sentido da vida em Hermann Broch e não aprendemos afinal onde fica Samarcanda. Tanta, tanta coisa que não fizemos juntos. Um amor que se perdeu não é apenas saudade do que foi vivido, mas nostalgia do que não se fez (e do que não se teve: torturei-me por não tê-la conhecido quando era menina e eu poderia tê-la visto correndo pelas ruas do seu bairro, e sofro por não poder estar ao seu lado quando ela tiver 80 anos. Não fui o seu primeiro espanto e não participarei da sua quietude de quem tudo viu e fez).

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Ficamos juntos por quase três anos. Tudo somado, três grandes anos.

Mas acabou. Houve os meus erros, houve os erros dela, houve tanta coisa. Às vezes lamento que ela, em algum momento, tenha se esforçado tanto para se dedicar apenas aos meus defeitos. Tenho-os às pencas, é verdade, mas, no seu dolorido inventário, descobri tantos outros que nem sequer imaginava que alguém pudesse ter, quanto mais eu. Tenho-os realmente?

Quando tudo se foi, tentei, como sempre, racionalizar: para entender a essência do amor, li Platão, Freud, Nietzsche, Ovídio, Montaigne. Tudo inútil: a essência do amor era ela.

Hoje, acompanho-a de longe, às vezes tenho notícias suas. Vejo-a mais segura, mais firme, mais conhecedora de si mesma. Dói em mim imaginar que ela poderia ser essa nova força e estar ainda comigo, mas, penso com meus botões, tudo bem: a vida é assim mesmo. Sim, a vida é assim mesmo, repito para mim quando um buraco se abre no meu peito e luto para não me perder no vácuo que ela deixou.

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Enfim, não estamos mais juntos. Haverá outras mulheres, sempre há. Só que sua imagem às vezes surge de mansinho e toma conta de mim — e aí eu me surpreendo não exatamente por ainda ter saudade, mas por ter tanto dela dentro mim, logo eu, o autossuficiente. Ela se foi — mas ela está em mim.

Ilustração: Leonid Afremov