O Segredo dos Seus Olhos: três viagens num carrossel

O Segredo dos Seus Olhos: três viagens num carrossel

Nossos vizinhos souberam enxergar-se em plena crise, expressando uma identidade nacional que combina tradição e ruptura por meio de obras primorosas que encantam o mundo

“O Segredo dos Seus Olhos”, de Juan José Campanella, é a composição de uma peça clássica em três movimentos. É um filme de amor dentro dos parâmetros conhecidos, ou seja, um casal próximo demais que não consegue se tocar durante o filme todo e só encontra uma solução no final. É um filme policial seguindo os trilhos do filme noir, onde um investigador solitário procura saber algo que todos querem esconder. E é um filme político, na linhagem das grandes obras do gênero, pois denuncia a origem da injustiça nas tramas do poder, e não na natureza humana.

A demonstração de força de um assassino estuprador diante de dois funcionários da Justiça, num elevador fechado, é a cena mais assustadora do filme. O bandido foi descoberto numa investigação criminal, mas está solto graças aos bons serviços de deduragem para a ditadura argentina. Quem treme não é o criminoso, mas as pessoas pagas pelo Estado para fazer valer a lei. Essa é a fonte da tragédia: o país condena as vítimas e estimula os algozes. O resultado é uma sociedade amordaçada, amores frustrados, casamentos partidos, processos arquivados.

Essas três viagens estão imbricadas de tal forma que não se distinguem os limites de cada gênero funcionando na trama. Assim como não existe hegemonia de um vetor cinematográfico sobre o outro, não existe também o vício fatal de focar tudo num só protagonista. Mesmo que a sobriedade, a seriedade, a gravidade e o carisma desse ator fundamental que é Ricardo Darín, no papel do investigador Espósito, costure todo o filme, ao lado da performance avassaladora de Soledad Vilamil no papel de sua chefe Irene, cada personagem ganha status de protagonista no carrossel de Campanella, que gira o prato diante da câmara e nos revela o quanto vale o indivíduo numa sociedade onde ele costuma sumir.

Guillermo Francella no papel do companheiro de Espósito, o bêbado Sandoval, é o “escada” que toma as rédeas da trama quando decifra o código do esconderijo do assassino. É o companheiro desesperado e fiel que assume a identidade do amigo tanto para escapar da vida insuportável como para livrar o outro de um assassinato. Pablo Rago como o viúvo Morales é o alter ego de Espósito quando este se aposenta e resolve escrever um romance sobre o caso da bela esposa violentada. Assume o comando várias vezes no filme, quando desperta em Darín a intensidade da sua concentração, em momentos de grandeza inigualável no cinema contemporâneo.

Javier Gondino como o criminoso Gómez é o bruto que, por vaidade, se entrega na hora do interrogatório, quando Irene, de propósito, faz pouco de sua macheza. Ele se trai quando mostra, nas fotos, sua obsessão pela vítima, pois os olhos falam e fazem Justiça quando tudo mais falha. José Luis Gioia, como o vingativo Inspetor Bañez, o corrupto que se beneficia da ditadura, assume a cara monstruosa da repressão no momento em que mais se precisava da lei.

Cada momento do filme, que se desdobra em três caminhos entrelaçados, ganha assim a riqueza de personagens diferentes, assumidos por grandes intérpretes. Os olhos são a pista que atrai o investigador, pois é a radicalidade do amor revelada no rosto do viúvo que o leva a perseguir o assunto até descobrir tudo sobre si mesmo.

Mas devemos abrir um claro para falar mais de Darín. Notamos como os mais notórios atores de hoje transparecem o esforço que fazem para trabalhar. De Niro extrai suas expressões no fórceps. Brad Pitt tem valor, mas basta se distrair um pouco para sua massa física se diluir na tela. Ben Affleck é um dos milhares bonecos de Hollywood que somem junto com o que faz. Phillip Seymour Hoffman é brilhante, mas deixa a afetação tomar conta dos seus papéis.

Em contrapartida, vejam Ricardo Darín neste e nos outros filmes, como “Nove Rainhas” ou “O Filho da Noiva”. Parece fácil fazer o que faz, mas tudo é fruto de vocação, talento e intensa elaboração. Quando medita, quando vê, quando aguarda, quando está indeciso e, especialmente, quando se ilumina, ficamos em frente ao grande ator do nosso tempo. É difícil de provar essa afirmação, num universo que tem Al Pacino entre outras estrelas. Mas voto em Darín. Nunca decepciona e sempre comparece com o melhor de sua arte. Não é pouco, neste mundo vazio que clama por espíritos habitados.