Francis chega a Berlim com um juramento simples e perigoso: viver como um homem decente, custe o que custar. Em “Berlin Alexanderplatz”, Burhan Qurbani segue essa promessa no rosto de Welket Bungué, com Albrecht Schuch e Jella Haase formando, ao redor dele, a mistura de atração e ameaça que move a trama. Sem documentos, Francis tenta ficar de pé, mas o dinheiro fácil de Reinhold e o amor por Mieze o puxam para o submundo da cidade, onde cada passo tem preço.
A primeira escolha é seca: não se vender. O obstáculo, também. Ser um refugiado ilegal, sem papéis, sem nação e sem autorização de trabalho faz com que qualquer tentativa de vida regular dependa de brechas e favores, sempre com medo de fiscalização. A promessa de decência vira regra de sobrevivência. Qurbani insiste no desgaste de procurar sustento quando a própria cidade já coloca o protagonista em falta.
Reinhold e o atalho que vira dívida
Nesse terreno, Reinhold aparece como solução de bolso. Ele oferece rede, dinheiro e a sensação de pertencer a algum lugar. Francis resiste no começo, mas a necessidade abre uma fenda e a aproximação vira hábito. Uma concessão chama outra. O favor vira dívida. A dívida vira compromisso. A cada novo degrau, o juramento fica mais distante, embora nunca deixe de ser lembrado.
Mieze desloca a tentação para o afeto. O romance sugere uma vida comum, uma rotina em que a palavra dada não precise ser provada todos os dias. Só que amar também cobra. Para proteger a relação, Francis esconde a origem do dinheiro e os vínculos que o sustentam, e isso o prende ainda mais a Reinhold. Quanto mais ele tenta construir um cotidiano, mais administra o invisível, e o invisível tem horários próprios.
Quedas, recomeços e o custo da promessa
A sinopse fala em quedas e recomeços, em levantar e começar de novo, até um colapso e um renascimento. O filme trabalha esse movimento como repetição com custo: a cada tentativa de retidão surge uma pressão diferente, em forma de lealdade, dívida, ameaça ou solidão. A promessa inicial não desaparece; ela se gasta. E esse gasto empurra o protagonista para escolhas que ele jurou evitar.
Três horas. São 183 minutos. O tempo pesa porque o filme decide acompanhar consequências e voltar, sem pressa, ao mesmo ponto de dor. Esse fôlego faz da história um épico urbano, mas também expõe um risco: às vezes a moral parece sublinhada demais. Parte da crítica percebeu aí uma ambição que nem sempre encontra medida, ainda que reconheça a força do elenco e a presença do protagonista. A aposta é alta, e a cobrança também.
O cerco entre Francis e Reinhold
A relação entre Francis e Reinhold é o motor mais inquieto, porque não se apoia apenas em ameaça aberta. Ela depende de proximidade, de dívida, de conversa, de convite. Reinhold oferece e retira; protege e cobra; aparece quando o outro está fraco. Romper esse vínculo teria um preço imediato: perder acesso, perder abrigo, ou melhor, não exatamente assim, perder até a sensação de existir em algum lugar, já que a falta de papéis transforma qualquer amparo em chantagem. Quando a história aperta, é ali que ela aperta: a amizade vira cerco, e a saída passa a ter sempre o rosto de outra concessão.
Qurbani reforça esse cerco com escolhas formais que críticos destacaram, como a narração em off de tom sombrio, que acrescenta presságios ao passo seguinte. A música de Dascha Dauenhauer e a fotografia de Yoshi Heimrath dão à Berlim noturna um brilho áspero, em que fascínio e ameaça quase se confundem. O juramento volta como eco, e a cidade parece ouvir sem responder.
Força do afeto e marcas antigas na atualização
Há, ao mesmo tempo, uma fragilidade que não dá para contornar. Parte da tragédia recai sobre figuras femininas como peça de circulação masculina, e mais de um crítico apontou que a atualização, apesar do deslocamento para a experiência migrante, carrega marcas antigas na maneira de tratar certas mulheres. Ainda assim, Mieze ganha peso como promessa de vida comum, e Jella Haase sustenta nela uma mistura de doçura e firmeza que mantém o afeto como força concreta.
“Berlin Alexanderplatz” avança como drama criminal de ascensão e queda em câmera lenta, com ganhos provisórios e custos que chegam antes do alívio. O juramento, repetido como farol e castigo, conduz a história por dentro: cada passo é medido contra aquela palavra inicial, e cada recuo tem seu preço. Qurbani filma uma cidade que exige documentos para conceder humanidade, e um homem que tenta sustentar humanidade quando a própria sobrevivência pede o contrário. A lembrança que fica é a de um homem com a promessa presa na garganta e o bolso vazio de papéis.
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