Logo na primeira sequência, durante um casamento na Nova York do pós-guerra, “O Poderoso Chefão” apresenta Vito Corleone, interpretado por Marlon Brando, recebendo súplicas em seu escritório enquanto a música e o vinho correm do lado de fora. Francis Ford Coppola enquadra ali a família Corleone, com Al Pacino e James Caan como filhos de um patriarca influente no submundo e na política. O conflito central nasce da sucessão desse poder: Michael, o mais jovem, esforça-se para manter distância da vida criminosa até ser empurrado a liderar um império sob ataque e em plena transformação.
Michael chega à festa como herói de guerra, veterano condecorado da Segunda Guerra, acompanhado da namorada Kay Adams, que nada conhece das regras daquele universo. Enquanto o pai negocia favores no interior escuro da casa, ele explica a ela, num canto mais claro, quem são Johnny Fontane, Luca Brasi e os homens que cercam a mesa do Don, e ao mesmo tempo se apresenta como alguém que se mantém à margem dessas decisões. O filme instala, assim, uma fratura inicial: o filho que narra a própria família de fora, como se pudesse atravessar o salão e nunca mais voltar para o escritório.
A calma aparente se desfaz quando Virgil Sollozzo, ligado ao tráfico de heroína, procura Vito em busca de investimento e proteção policial. O patriarca recusa, temendo perder aliados políticos e expor a família a um negócio considerado sujo até para aquele meio. A resposta vem em forma de emboscada: Vito é alvejado na rua, Tom Hagen sequestrado, Sonny assume o comando e a polícia comprada deixa o hospital desguarnecido. É ali que Michael toma a primeira decisão irreversível, improvisando uma defesa para o pai e aceitando assassinar Sollozzo e o capitão McCluskey num restaurante, num gesto calculado que rompe qualquer limite entre o “cidadão” e o mafioso.
Depois do duplo assassinato, a narrativa desloca Michael para a Sicília, sob proteção de aliados. O ritmo muda, a paisagem se abre, e o protagonista, que antes circulava por corredores escuros e salas fechadas, passa a caminhar por estradas de terra e vilarejos batidos de sol. Ele se apaixona e se casa com Apollonia, jovem local que condensa a possibilidade de outro futuro, fora da lógica americana do negócio. Essa promessa explode junto com o carro em que ela entra no lugar do marido, lembrando que nem a distância geográfica suspende a guerra iniciada na mesa do restaurante.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, a disputa entre famílias se intensifica até atingir Sonny, emboscado num pedágio quando corre para socorrer a irmã agredida. A morte do filho impulsivo e anos de conflito levam Vito a buscar acordo com os outros chefes, cedendo influência em troca de uma trégua que preserve o núcleo dos Corleone. Quando Michael retorna do exílio e se casa com Kay, já não há espaço para o rapaz que dizia estar fora do negócio; pouco a pouco, ele assume o lugar do pai, reorganiza as operações em direção a Las Vegas e prepara uma transferência de poder vendida como modernização, mas sustentada por decisões cada vez mais sangrentas.
Essa transição encontra forma plena na sequência do batismo, quando Michael se torna padrinho de um bebê enquanto ordena a eliminação coordenada de rivais. A montagem alterna o rito religioso, as fórmulas de renúncia ao mal, com planos secos de homens abatidos em diferentes pontos da cidade; igreja cheia, sinos, órgão, tudo convivendo com tiros, portas arrombadas, corpos no chão. Ele parece agir em nome de uma prudência calculada, ou melhor, de uma frieza que se apresenta como estratégia, porque cada morte também corrige uma humilhação antiga, uma ofensa guardada em silêncio. Nesse cruzamento entre fé pública e violência privada, fica evidente que a tal “legitimidade” passa por rituais respeitáveis, mas nasce do medo.
Se muito do peso dramático vem das decisões, o efeito não se apoia apenas no roteiro. Marlon Brando constrói Vito com voz baixa, gestos contidos, olhar que quase não se altera, mesmo nos momentos de agressão verbal. Al Pacino desenha curva oposta: começa com olhos abertos, curiosos, e termina de rosto fechado, voz mínima, corpo imóvel enquanto tudo gira ao redor. James Caan é explosão e impaciência constantes, lembrando o custo de cada impulso. A fotografia escura de Gordon Willis e a trilha de Nino Rota reforçam a sensação de mundo cercado, em que a luz raramente invade o escritório e a música anuncia uma dívida que mais cedo ou mais tarde será cobrada.
Os espaços ajudam nessa impressão. Portas se abrem e se fecham com calma. Corredores estreitos canalizam homens armados. Salas cheias de fumaça acumulam decisões. Do lado de fora, festas, jardins, crianças correndo. Dentro, contratos selados em sussurros. O filme insiste nessa duplicidade. Festa e luto. Música alta e ameaça. Família em volta da mesa e alguém prestes a ser afastado dela.
Décadas depois da estreia, o filme permanece como referência central do cinema de gângster, pela forma como relaciona crime, política e negócios de família num circuito de lealdades e traições. A narrativa acompanha a ascensão de Michael ao comando dos Corleone, mas cada passo desse movimento arrasta uma perda concreta: parentes, amores, crenças, o resquício de confiança entre marido e mulher, visível na porta que se fecha sobre o rosto de Kay. A força de “O Poderoso Chefão” está nesse acúmulo de silêncios e portas cerradas, nesses instantes em que alguém escolhe proteger o sobrenome e, ao fazê-lo, aceita que a sala fique mais escura, mais vazia, quase impossível de abandonar.
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