Discover
A babá que fotografou o século e morreu anônima: por que Vivian Maier importa agora

A babá que fotografou o século e morreu anônima: por que Vivian Maier importa agora

Na sala branca, iluminada por lâmpadas fluorescentes de um armazém de Chicago, em 2007, o leilão de penhores avança sem brilho. Móveis quebrados, caixas anônimas, eletrodomésticos antigos passam rápido diante do pequeno público, vendidos em lotes a quem procura revenda, não lembranças. No meio desse fluxo, um grupo de caixas de arquivo numeradas é arrematado por poucos dólares por um comprador interessado em imagens históricas da cidade. Em casa, ao abrir os pacotes, ele encontra milhares de negativos alinhados com cuidado, todos carimbados com o mesmo nome: Vivian Maier.

À medida que as imagens são ampliadas, surgem trabalhadores na saída da fábrica, crianças excessivamente agasalhadas, senhoras de chapéu, homens adormecidos em bancos de praça. Não há celebridades nem grandes cerimônias oficiais; são ruas, encontros fortuitos, pequenos acidentes de expressão. O enquadramento aparece seguro, e o instante escolhido tende à ambiguidade, como se a cena tivesse sido interrompida no meio. Só depois se completa a ficha: a autora, nascida em 1926, morreria em 2009, numa instituição para idosos em Oak Park, sem acompanhar a circulação dessas fotografias.

Origem, infância e chegada a Chicago

Vivian Dorothy Maier nasceu em Nova York, filha de uma francesa e de um austríaco, e passou a infância dividida entre o Bronx e pequenos vilarejos no interior da França. A família se desfez em idas e vindas pouco registradas, produzindo lacunas que pesquisadores ainda tentam preencher. No início dos anos 1950, de volta aos Estados Unidos, Maier passou por empregos de baixa qualificação até se mudar, em 1956, para o norte de Chicago, onde ficaria por décadas empregada como babá e cuidadora em casas de classe média alta.

A rotina combinava tarefas domésticas e caminhadas longas com as crianças por parques, avenidas comerciais e áreas industriais. Nesses percursos, a câmera de médio formato, em geral uma Rolleiflex pendurada à altura da cintura, era tão constante quanto o casaco escuro e o chapéu firme. O equipamento permitia fotografar olhando para baixo, sem erguer o aparelho ao rosto, o que suavizava o confronto com quem aparecia no quadro. Essa posição híbrida de babá e observadora abriu acesso a espaços contraditórios da cidade, da sala de estar organizada à calçada esburacada.

Um arquivo urbano de 150 mil imagens

Entre as décadas de 1950 e 1990, Maier produziu mais de 150 mil fotografias, primeiro em preto e branco e, mais tarde, também em cores, concentradas sobretudo em Chicago e Nova York. Registrou fachadas, vitrines, manifestações, filas, festas de rua, quase sempre fora do enquadramento dos cartões-postais oficiais, com atenção recorrente a crianças, idosos, trabalhadores, pessoas em situação de rua. Em 1959 e 1960, financiada pela venda de uma propriedade da família na França, viajou sozinha por países da Europa, da Ásia e do Oriente Médio. Autorretratos em vitrines e sombras completavam o conjunto, ao lado de caixas de negativos e jornais empilhados nos quartos onde vivia.

Velhice, leilões, disputas e consagração póstuma

Na velhice, sem família por perto e enfrentando dificuldades financeiras, Maier passou a contar com a ajuda de ex-empregadores, entre eles os irmãos Gensburg, que haviam sido crianças sob seus cuidados. Eles garantiram por algum tempo um apartamento modesto para a antiga babá, já incapaz de trabalhar com regularidade. Em 2008, uma queda no gelo piorou seu estado de saúde; alguns meses depois, Maier foi internada em uma instituição onde morreria em abril de 2009. Nesse intervalo, parte dos boxes de armazenamento que guardavam seu acervo deixou de ser paga, e o conteúdo acabou levado a leilão.

O leilão de 2007 espalhou o material por diferentes colecionadores de Chicago, que começaram a revelar, digitalizar e divulgar as imagens. Em 2009, uma seleção publicada em um blog e no Flickr ganhou alcance rápido, atraindo milhares de visualizações e convites para mostras. Em poucos anos, a fotógrafa até então desconhecida passou a ocupar salas em centros culturais da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina, incluindo uma exposição de grande público no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, em 2015. O documentário “Finding Vivian Maier”, lançado em 2013, consolidou essa narrativa de descoberta tardia.

A consagração acelerada veio acompanhada de disputas jurídicas e comerciais. A posse física de negativos e ampliações não se confunde com direitos autorais, e a ausência de testamento abriu dúvidas sobre quem poderia explorar economicamente as imagens. Um primo distante na França foi identificado como potencial herdeiro, enquanto o condado de Cook, em Illinois, criou um espólio oficial para negociar acordos com colecionadores. Ao mesmo tempo, a venda de cópias financiou livros, exposições e iniciativas como um fundo de bolsas em seu nome na School of the Art Institute of Chicago.

O caso de Maier evidencia, de forma incômoda, a tensão entre o trabalho invisível de uma mulher imigrante e a valorização posterior de sua produção artística. Durante décadas, uma trabalhadora doméstica percorreu a cidade produzindo, sozinha, um arquivo amplo da vida urbana, sem acesso a redes profissionais, editais ou galerias. Após sua morte, esse arquivo se transformou em ativo cultural disputado, convertido em commodity internacional. Em salas de museu, autorretratos de Vivian refletida em vitrines são fotografados por visitantes com celular, enquanto sua história lembra que a memória visual ainda depende de quem tem chave para abrir o box certo.