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Thriller de Steven Spielberg com Tom Hanks e Leonardo DiCaprio é um dos filmes mais geniais do século, na Netflix Divulgação / Dreamworks

Thriller de Steven Spielberg com Tom Hanks e Leonardo DiCaprio é um dos filmes mais geniais do século, na Netflix

O primeiro contato com “Prenda-me Se For Capaz” provoca a sensação de que Steven Spielberg encontrou, na biografia de Frank Abagnale Jr., um terreno fértil para investigar a engenhosidade humana longe do heroísmo convencional. O filme orbita a trajetória de Frank, vivido por Leonardo DiCaprio, um adolescente que responde ao colapso familiar criando um personagem atrás do outro. Ele não se move por ambição épica, e sim por uma tentativa desesperada de reorganizar o próprio mundo quando percebe que o dos pais já não tem conserto. Essa perspectiva, menos romântica do que costuma aparecer em narrativas sobre golpistas, dá ao longa um caráter mais direto: o impulso de Frank tem raízes simples, quase cruas, e é justamente essa economia de drama que sustenta a lógica da história.

A relação entre Frank e Carl Hanratty, interpretado por Tom Hanks, é o eixo que impede o enredo de se dissolver em truques e corridas de gato e rato. Carl opera sob um código rígido, quase ascético, enquanto Frank improvisa como se a vida fosse um palco em constante remodelação. A tensão entre método e intuição funciona como espelho invertido: Carl tenta classificar o que foge ao seu esquema mental, e Frank tenta preencher com invenção aquilo que não encontra nos adultos que deveriam lhe oferecer estabilidade. A perseguição entre os dois não é construída como jogo de superioridade; ela avança por fricção moral. Cada encontro evidencia que Frank escapa porque enxerga brechas onde Carl enxerga apenas regras. E Carl, ao insistir, força Frank a lidar com os limites que ele próprio tenta ignorar.

Christopher Walken, como Frank Abagnale Sr., é a outra chave para entender o protagonista. Seu papel ultrapassa a função de referência paterna: ele fornece a Frank uma ética deformada pela frustração. A figura do pai é ambígua, carismática e profundamente derrotada, e Walken conduz essa combinação sem se apoiar em sentimentalismo. O afeto entre os dois é real, mas contaminado pela incapacidade de cada um encarar a própria desordem. Assim, quando Frank se lança ao universo de identidades inventadas, não está apenas fugindo da dor doméstica; está tentando prolongar uma imagem idealizada do pai, ainda que essa imagem seja insustentável.

Há outro ponto estrutural relevante: Spielberg mantém a história marcada pelos anos 60 de modo concreto, evitando a nostalgia fácil. Não se trata de uma paisagem emoldurada, mas de um tempo em que confiar em uniformes, selos e carimbos parecia suficiente para validar qualquer figura de autoridade. Frank explora justamente essa confiança bruta, criando a ilusão de competência tão somente porque ninguém imagina que um jovem possa ocupar lugares tão distantes de sua realidade. A facilidade com que ele atravessa espaços formais revela mais sobre o país do que sobre sua genialidade individual: quem se move com segurança costuma ser tomado por legítimo, mesmo quando não é.

A dimensão ética, frequentemente suavizada por quem recebe o filme apenas como entretenimento, permanece no subsolo da narrativa. Frank efetivamente comete crimes, e Spielberg não tenta absolver nem condenar de modo explícito. Em vez disso, insiste em algo mais incômodo: o espectador acompanha a ascensão do golpista com certa empatia porque entende de onde nasce o impulso, e só depois percebe que esse entendimento não anula a gravidade do que é feito. O contraste entre charme e dano permanece aberto, permitindo reflexões sobre como sociedades legitimam figuras que dominam a performance do sucesso.

Quando Frank enfim compreende que a fuga perdeu sentido, o impacto não vem do espetáculo, e sim do desgaste acumulado. A captura não soa como derrota, mas como interrupção necessária. Spielberg evita a celebração vazia e aposta em um encerramento que expõe o que restou daquelas duas figuras: um jovem que gastou anos fugindo de si mesmo e um agente que só compreende a extensão do caso quando alcança o homem por trás do truque.

“Prenda-me Se For Capaz” funciona, portanto, como estudo sobre identidade construída em terreno instável. O filme observa a elasticidade moral de um país fascinado por aparências e acompanha um garoto que transforma essa fissura em método de sobrevivência. O fascínio do público nunca é pedido; ele é provocado pela franqueza narrativa. Spielberg devolve ao espectador a responsabilidade de pensar sobre o encanto de um vigarista que só queria restaurar a família que perdeu, mesmo que o caminho escolhido fosse o menos justificável. O que permanece não é a astúcia dos golpes, mas a constatação de que, às vezes, a mentira exige menos coragem do que encarar a própria história.

Filme: Prenda-me Se For Capaz
Diretor: Steven Spielberg
Ano: 2002
Gênero: Biografia/Crime/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.