Uma casa isolada em paisagem gelada, um pai que treina a filha como se fosse recruta e prisioneira ao mesmo tempo. Esse é o ambiente em que “Hanna” introduz a adolescente interpretada por Saoirse Ronan, guiada pelo ex-agente Erik, vivido por Eric Bana, e perseguida pela implacável Marissa, papel de Cate Blanchett, sob direção de Joe Wright. O conflito central se apresenta de maneira direta: a jovem precisa deixar o esconderijo para enfrentar quem a quer morta e, ao fazer isso, descobrir de qual projeto nasceu e qual é a verdade sobre seu próprio corpo.
A decisão de apertar o botão que aciona os sistemas de vigilância ocidentais funciona como gatilho e como despedida. Hanna aceita abandonar a segurança rígida da cabana porque acredita que já domina golpes, idiomas, técnicas de fuga e leitura de perigo suficientes para sobreviver sozinha. Erik, por sua vez, aceita separar-se da filha porque sabe que permanecer parado significa ser localizado em pouco tempo. O gesto aparentemente simples de ligar um transmissor improvisado abre a porta para uma rota que nenhum dos dois consegue controlar por completo.
Quando agentes invadem o abrigo e levam Hanna para um centro de detenção subterrâneo, o filme desloca o foco para o choque entre treinamento e burocracia. Trancada em cela anônima, cercada por interrogadores que se alternam entre simpatia calculada e ameaça velada, a jovem decide confiar apenas no que aprendeu, recusando qualquer gesto de cuidado institucional. Do outro lado, Marissa escolhe mobilizar toda a máquina de segurança para conter um segredo genético antigo. O obstáculo deixa de ser apenas sair de um quarto trancado e passa a incluir barreiras físicas e administrativas que se revezam como grades invisíveis.
A partir do momento em que Hanna escapa do complexo e cai numa paisagem desértica, o filme assume claramente a rota como guia. Ela precisa chegar a um ponto específico da Europa, com pouco dinheiro, sem documentos e com conhecimento quase teórico do mundo exterior. Cada encontro no caminho testa essa formação incompleta. A família de turistas que a acolhe por alguns dias oferece um afeto barulhento, cheio de improviso, em que regras são mais negociadas do que impostas. Hanna hesita entre esse calor provisório e a disciplina dura que aprendeu na cabana, sabendo que qualquer aproximação pode virar alvo.
Os espaços atravessados reforçam a sensação de deslocamento permanente. Um camping à beira de estrada, uma pensão decadente em Berlim, um parque de diversões vazio à noite: lugares em que Wright prolonga corredores, esquinas e passagens estreitas, como se o filme insistisse em mostrar o tempo que antecede cada ação violenta. Mudanças bruscas entre silêncio e explosões de som indicam que nenhuma conversa é neutra. Em qualquer ambiente pode haver um microfone escondido, uma arma ao alcance da mão, um olhar que observa demais. A perseguição se desenha tanto nas ruas quanto dentro da cabeça da protagonista, que mede cada passo como se o chão pudesse ceder.
Em vários trechos, a narrativa acelera e encurta a distância entre descoberta e reação. Uma informação colhida num diálogo rápido em quarto minúsculo se transforma, poucas cenas depois, em emboscada num contêiner à margem de um porto. Um rosto visto de relance em parque temático reaparece como ameaça concreta na saída de uma estação. Hanna calcula mal, confia em quem não deveria, interpreta sinais de forma incompleta. Marissa, por outro lado, subestima a velocidade de adaptação da garota e insiste em aplicar protocolos pensados para alvos adultos, mais previsíveis. Cada escolha precipitada de um lado gera oportunidade inesperada do outro, mantendo a ideia de caçada prolongada sem perder o contato físico, o choque direto.
Há um momento em que tudo parece ocorrer em poucos minutos. Carros avançam. Corredores se multiplicam. Tiros ecoam em espaços fechados demais. As frases da ação são curtas. Pessoas correm. Portas se abrem. Portas se fecham. Ninguém tem tempo para elaborar culpa ou arrependimento. A câmera acompanha um corpo de cada vez, sem explicações adicionais. Ali, o risco é concreto: ou Hanna cruza aquele labirinto, ou é capturada e apagada como dado inconveniente de um arquivo antigo. Não existe opção confortável. Qualquer movimento implica perda física ou afetiva.
Em paralelo ao deslocamento geográfico, o filme observa pequenas negociações de identidade. Hanna decide ouvir música com a amiga temporária, entrar numa boate, testar a própria expressão diante do espelho de um banheiro público. Ou melhor, não exatamente como rito de passagem adolescente padrão, e sim como tentativa urgente de entender o que resta de sujeito por trás do condicionamento. Esses instantes leves convivem com a sensação constante de cerco. Marissa passa por aeroportos frios, dirige carros alugados, visita casas discretas onde antigos colegas pedem distância. Sua decisão é nunca recuar, mesmo quando subordinados sugerem encerrar a perseguição. Para ela, preservar o segredo justifica qualquer excesso.
Wright dá preferência a encontros cara a cara em ambientes controlados. Interrogatórios em salas quase vazias, almoços estranhamente silenciosos, visitas a senhores que prefeririam que o passado continuasse enterrado. Nesses espaços, a fala pesa tanto quanto o disparo de uma arma. Uma frase interrompida pela metade revela medo de escuta oculta. Um sorriso rígido tenta disfarçar a ameaça. O filme usa esse confronto verbal como etapa preparatória para os choques mais diretos, sem esquecer que a protagonista continua sendo uma adolescente que descobre o mundo em movimento, dentro de carros, trens, trilhos e corredores de parque temático iluminados de forma agressiva.
Quando Hanna enfim se aproxima da origem de sua história, as perguntas que adiou desde a cabana retornam com força. Ela precisa decidir se continua em fuga ou se encara, de frente, quem guardou seu passado em arquivos e galpões industriais. Adultos à volta desviam, silenciam, evitam nomear o que foi feito. A resposta não é mostrada. O que permanece é a imagem de um corpo jovem em alerta, ainda em deslocamento, forçado a carregar ao mesmo tempo o peso da corrida e o peso de saber demais.
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