A câmera gira pelo salão de baile em Harvard. Estudantes em fraques brancos dançam, o chão de madeira rangendo sob camadas de tule. É a abertura de “O Portal do Paraíso” (“Heaven’s Gate”, 1980), western que muitos brasileiros conhecem mais pela fama do que pelas imagens: “o filme que arruinou carreiras”, “o longa que quebrou um estúdio”. Na cópia restaurada que hoje circula em cinematecas e plataformas, tudo parece calculado, quase meticulosamente controlado. Fora da tela, porém, o título segue associado à ideia de maldição industrial, uma espécie de aviso em forma de filme.
O homem no centro dessa história era Michael Cimino, então tratado como prodígio da geração da Nova Hollywood. Um ano antes, ele havia levado o Oscar de melhor direção e melhor filme com “O Franco-Atirador”, drama de guerra que consolidou sua reputação de autor ambicioso. Fortalecido por esse prestígio, convenceu a “United Artists” a ressuscitar um roteiro antigo sobre a Guerra do Condado de Johnson, conflito real entre latifundiários e imigrantes europeus no Wyoming do fim do século 19. Recebeu um orçamento alto para um projeto de época e, mais decisivo que o dinheiro, algo raro hoje: liberdade criativa quase total, respaldada por um estúdio que se orgulhava de confiar em diretores.
No papel, era o casamento perfeito entre uma empresa que cultivava a imagem de refúgio dos cineastas-autor e um diretor que prometia entregar “o grande western revisionista” do período. No set, montado em locações de Montana transformadas em cidade inteira do Velho Oeste, essa liberdade virou perfeccionismo obsessivo. Cimino mandava alargar ruas, reposicionar casas, refazer figurinos porque a textura do tecido não reagia bem à luz. Extras repetiam uma mesma dança dezenas de vezes até que a coreografia de massa parecesse espontânea, casual, como se estivesse acontecendo pela primeira vez. O cronograma escorregou, o filme passou a consumir fortunas semanais e o orçamento final acabou mais que triplicando. A imprensa especializada começou a chamá-lo de “produção amaldiçoada” antes mesmo de a filmagem terminar.
Quando Cimino finalmente mostrou um primeiro corte à “United Artists”, no meio de 1980, o filme tinha mais de cinco horas de duração. O diretor falou em pequenos ajustes; os executivos exigiram um longa exibível ainda naquele ano, com alguma chance de retorno financeiro. Depois de uma maratona de montagem, nasceu uma versão de pouco menos de quatro horas, programada para uma pré-estreia em Nova York, com campanha publicitária milionária e champanhe para convidados. Segundo relatos de bastidores, ao fim da sessão a sala permaneceu em silêncio constrangedor. Cimino teria perguntado por que ninguém bebia. “Porque eles detestaram o filme, Michael”, resumiu o publicista, gelando qualquer resquício de euforia.
No dia seguinte, o crítico Vincent Canby, do “New York Times”, classificou “O Portal do Paraíso” como “um desastre sem qualificações”, comparando a experiência a um tour forçado pela própria sala de estar, só que muito mais longo. Outros veículos copiaram o tom de escárnio, alguns quase competindo para ver quem encontrava a metáfora mais cruel. Com bilheterias mínimas, a “United Artists” tomou uma decisão inédita: tirou o filme de cartaz após poucos dias, cancelou o lançamento nacional e devolveu o longa à moviola. Uma versão encurtada, lançada em 1981 com pouco mais de duas horas, fracassou de novo, arrecadando apenas uma fração do investimento e consolidando a reputação de desastre absoluto.
O saldo financeiro, embora pesado, não derrubou sozinho o conglomerado Transamerica, controlador da “United Artists”. Outros títulos problemáticos já tinham abalado o estúdio naquele início de década. Mas “O Portal do Paraíso” destruiu sua reputação junto à matriz e à comunidade de Hollywood, virando peça de acusação perfeita para quem defendia que diretores não podiam ter tanto poder. Em 1981, a Transamerica decidiu sair do setor e vendeu a “United Artists” para a MGM, encerrando sua existência como estúdio autônomo. Para muitos historiadores, ali se cristaliza o fim simbólico da Nova Hollywood e a virada para um cinema de grandes blockbusters, mais controlado por executivos, menos paciente com apostas autorais de alto risco.
Por trás dessa narrativa de desastre absoluto, havia outras ansiedades circulando. “O Portal do Paraíso” foi atacado pela duração excessiva, pela fotografia enevoada, pela opção cara de erguer cidades inteiras em vez de usar cenários prontos. Mas também incomodou por colocar, no centro, um massacre de imigrantes pobres patrocinado por empresários, com aval do Estado, num momento em que os Estados Unidos deslizavam para a era Reagan. O filme sugere um país fundado em violência de classe e etnia organizada, não em mito heroico individual. A crítica dominante raramente formulava isso diretamente; era mais fácil falar em “vaidade”, “megalomania”, “delírio de grandeza” de um único diretor.
Hoje, em escolas de cinema brasileiras, “O Portal do Paraíso” aparece com frequência como estudo de caso extremo de descontrole orçamentário. Quando um projeto nacional cresce rápido demais, alguém invariavelmente comenta que “isso pode virar um “Heaven’s Gate”, como se evocasse um fantasma contábil pairando sobre o cronograma. A expressão funciona como mecanismo disciplinador: lembra que, na lógica da indústria, o fracasso tem CPF, rosto e assinatura, quase nunca divididos de modo justo entre artistas, executivos e acionistas. O filme passou a viver também como metáfora, citado em reuniões de aprovação de projetos para segurar impulsos considerados grandiosos demais.
Quarenta e poucos anos depois, enquanto plataformas de streaming despejam bilhões em séries e franquias, a abertura em Harvard continua girando, lenta, excessiva, hipnótica. A pergunta que ela deixa no ar talvez não seja se Cimino “tinha razão” ou não, mas até onde a indústria está disposta a ir quando decide apostar que um único nome, um único filme, pode salvar — ou afundar — um império inteiro. A maldição, nesse sentido, não é sobrenatural; é apenas o outro nome do risco quando alguém, em alguma sala de reunião, diz “aprovado” e assina o cheque.
