A maior ruptura da indústria chegou: IA produz hits em minutos e deixa criadores humanos à beira da irrelevância

A maior ruptura da indústria chegou: IA produz hits em minutos e deixa criadores humanos à beira da irrelevância

O cursor pisca na tela escura, o campo de texto pede apenas uma descrição: “funk carioca romântico, batida simples, refrão chiclete”. O produtor ajusta o BPM, escolhe “voz feminina em português”, aperta gerar. Enquanto toma um gole de café, recebe dois arquivos de dois minutos, com voz, letra, mixagem e capa provisória. Tudo pronto para subir no TikTok, Spotify, Reels. A distância entre a ideia e a faixa pronta virou questão de minutos.

Cenas parecidas se repetem em quartos de periferia, estúdios profissionais e agências de publicidade. Plataformas como Suno e Udio permitem que qualquer pessoa, mesmo sem tocar instrumento, gere canções completas a partir de prompts, combinando gênero, humor, tema e um certo “clima emocional”. Udio, lançado em abril de 2024, oferece centenas de músicas gratuitas por mês e vocais que soam naturais o bastante para enganar ouvidos distraídos.

O resultado é um volume de produção inédito. A francesa Deezer calcula que cerca de 18 por cento das músicas enviadas à plataforma já são totalmente geradas por IA, com mais de 20 mil novas faixas artificiais por dia. O Spotify afirma ter removido, em doze meses, 75 milhões de faixas classificadas como spam, ligadas a esquemas de IA que exploravam o modelo de remuneração por streaming, num catálogo total de cerca de 100 milhões de músicas.

Se criar custa quase nada, publicar em massa vira estratégia. Surgem produtores que programam dezenas de prompts por dia para empilhar microcentavos em playlists obscuras, trilhas de estudo, faixas lofi de fundo. No Brasil, canais no YouTube ensinam a gerar funk, trap, piseiro e phonk “com poucos cliques”, usando Suno para testar arranjos e vozes antes de regravar, ou nem isso, quando o orçamento é curto e o prazo, ontem.

Para muitos músicos, a sensação é de invasão territorial. “Não é só concorrência por atenção, é concorrência por espaço de prateleira digital”, diz uma compositora de trilhas para publicidade, que pede anonimato para não perder contratos. No mercado de jingles, onde prazos já eram de dias, clientes agora pedem “uma opção com IA” em 24 horas, só para ver se funciona. Quando funciona, o cachê do humano encolhe, vira consultoria, revisão, ajuste fino.

As grandes gravadoras reagiram primeiro com processos. Em 2024, Universal, Warner e Sony moveram ações contra Suno e Udio nos Estados Unidos, acusando uso de catálogos protegidos sem autorização e pedindo até 150 mil dólares por música copiada. Pouco depois, o tom começou a mudar: a Universal fechou acordo com a Udio, e a Warner, que processava a Suno, firmou parceria permitindo ao público gerar canções com vozes e composições de artistas que aceitarem participar, em troca de modelos considerados autorizados e limites de download.

Do ponto de vista jurídico, a disputa gira em torno de quem pode autorizar o uso do “DNA sonoro” das obras. Organizações de direitos autorais brasileiras alertam que, se os modelos forem treinados com catálogos locais sem negociação específica, compositores e intérpretes verão seus estilos replicados em larga escala sem remuneração equivalente. O debate parece abstrato até que uma voz sintetizada soe muito parecida com a de uma cantora popular, mas com letra genérica escrita em segundos.

Os exemplos já existem. Em 2023, o hit clandestino “Heart on My Sleeve”, com vocais gerados à maneira de Drake e The Weeknd, foi apagado de plataformas após pressão da gravadora, inaugurando o medo de um mercado inundado por imitações convincentes. Em 2025, a faixa “I Run”, criada com voz artificial que lembrava a britânica Jorja Smith, repetiu o roteiro: viralização rápida, desmentido público da artista, remoção por violar políticas de impersonação.

Entre os casos extremos e o cotidiano estão milhares de criadores que usam IA como atalho, não necessariamente como fraude. Um beatmaker de funk relata que faz “rascunhos” com Suno antes de chamar cantores: mostra a guia gerada pela máquina, o intérprete entende o clima, reescreve a letra, grava por cima. Pesquisadores de cultura digital lembram que a indústria já passou por outras rupturas, como sampler, autotune e bases prontas, mas destacam que, agora, a escala e a opacidade são inéditas.

Nesse cenário, o valor do trabalho se desloca. Em escritórios de publicidade, redatores que escreviam jingles viram “diretores de prompt”, responsáveis por combinar referências de estilo e orientar a máquina. Em selos independentes de música eletrônica, a IA cuida de camadas de textura que antes consumiam dias de programação, enquanto produtores se concentram na estrutura e na narrativa sonora. Quem mais perde são os profissionais que faziam trilhas de biblioteca, músicas de espera, vinhetas discretas, o trabalho invisível que softwares por assinatura substituem com mais eficiência.

No Brasil, essa transição ocorre em um mercado já fragilizado por cachês baixos, contratos opacos de streaming e pouca estrutura sindical. Em rodas de conversa organizadas por coletivos de músicos, ouve-se a mesma pergunta: não é se a IA vai dominar, mas quem controla a infraestrutura e quem lucra com ela. Uma saída possível passa por modelos de licenciamento mais transparentes, por ferramentas que identifiquem o uso de catálogos nacionais e por educação digital para recusar acordos abusivos.

Enquanto essas discussões avançam lentamente em conselhos, congressos e tribunais, o produtor no quarto apertado em São Paulo segue digitando prompts e publicando faixas. Em uma aba, abre o contrato padrão de distribuição digital; em outra, o painel da plataforma de IA, cheio de estilos pré-programados. O refrão seguinte, humano ou sintético, certamente não será o último. A questão é quem, no fim da cadeia, ainda poderá viver dele.