Erigidas ao longo de séculos como pilares de identificação coletiva, as tradições costumam bater de frente com o bom e velho amor romântico. Urgente, a vida como ela é, pragmática e tediosa, insiste em lembrar-nos que o gosto pelo risco e pela autenticidade sempre foi um comportamento a ser abolido e merecedor de condenação eterna e implacável, porque sonho não enche barriga. Houve um tempo em que admitir o fracasso de um casamento era aceitar tacitamente uma infelicidade sem solução, porque ninguém digno de respeito sairia de casa por amor — isto é, pela falta dele —, e assim “O Quatrilho” começa a dizer a que veio. A história dos dois casais de colonos italianos que vão morar sob o mesmo teto e acabam percebendo que devem trocar de parceiros entre si, qual no jogo de cartas de mesmo nome, correu mundo e chamou a atenção da Academia, chegando a ser indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Mas este é um passado distante.
Símbolo da retomada do cinema brasileiro após o desmantelamento, no governo Fernando Collor de Mello (1990-1992), da Embrafilme, autarquia responsável por produzir e distribuir peças de audiovisual, o filme tornou-se pouco mais que um documento formal da reinvenção da arte cinematográfica num país ainda por se descobrir. Baseado no romance homônimo do escritor gaúcho José Clemente Pozenato (1938-2024), de 1985, o roteiro de Antônio Calmon e Leopoldo Serran (1942-2008) dá a impressão de congelado decorridas apenas três décadas — e isso nada tem a ver com as imagens quase tremidas e bastante granuladas que a remasterização não pôde melhorar. Segundo dos três filhos do casal de produtores Luiz Carlos e Lucy Barreto, Fábio Barreto (1957-2019) esmera-se no registro do dia a dia dos imigrantes italianos da serra gaúcha no princípio do século 20, sempre ocupados em lavrar a terra e dela tirar seu sustento, seja pisando as uvas para fabricar o vinho ou com a agricultura de subsistência. Tomadas longas de Bento Gonçalves,Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Farroupilha transportam o público para um Brasil que não existe mais, ainda que insinuado nas arquiteturas neorromântica, camponesa e de enxaimel. Mas cinema é movimento.
Não há muito a ser dito acerca da performance do elenco, além do óbvio. Desde o começo, intui-se aonde irá levar a proximidade de Teresa e Massimo, dois tipos alguns centímetros acima do chão duro da realidade. Casada com Angelo, Teresa tem uma personalidade mais afeita à do boêmio Massimo, cuja esposa, Pierina, parece somente tolerar aquela vida, aquele lugarejo e aquelas pessoas. Não é nenhum choque, portanto, a troca de casais, concretizada com a fuga de Teresa e Massimo, porém a atitude de Pierina e Angelo, que enfrentam os olhares tortos dos vizinhos e levam a cabo a nova união, não vence o clichê. Patrícia Pillar e Bruno Campos, claro, são o centro das atenções, e à certa altura, Glória Pires também tem sua hora dourada, numa cena sobre o perigo de se viver numa comunidade provinciana. Alexandre Paternost, é uma pena, vai minguando conforme o enredo avança. Boa premissa com uma execução claudicante, “O Quatrilho” é só um quadro na parede. Felizmente, a casa foi reformada.
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