Drama tenso da Netflix que parece político, mas vira algo muito mais perturbador Divulgação / Netflix

Drama tenso da Netflix que parece político, mas vira algo muito mais perturbador

A narrativa de “Uma Vida Honesta” se constrói a partir de um paradoxo inquietante: a tentativa de Anders, interpretado por Simon Lööf, de reorganizar a própria rotina após uma sequência de derrotas pessoais o coloca diante de um ambiente em que escolhas mínimas desencadeiam consequências desproporcionalmente severas. Ele não é um protagonista destinado à liderança, tampouco alguém movido por convicções transformadoras. Funciona quase como um observador tragado por eventos que não compreende por completo, mas dos quais não consegue escapar. Essa condição de passividade, longe de sugerir contemplação, acentua a sensação de deslocamento que atravessa toda a história.

A aproximação entre Anders e o grupo liderado por Minna, vivida por Josefine Lindegaard, nasce menos de adesão a algum ideal e mais de uma carência de direção que vai se acumulando em silêncio. Minna surge como alguém capaz de formular convicções com clareza, mesmo que essas convicções se revelem progressivamente frágeis ou contraditórias. A ele, acostumado a reagir ao mundo em vez de tensioná-lo, parece suficiente a ilusão de pertencimento. Esse desequilíbrio inicial explica por que a radicalização do grupo não se sustenta como crítica social e, sim, como demonstração de desagregação interna: não há qualquer coerência prática em atos que atacam justamente aqueles que compõem a base social que supostamente pretendem defender.

O roteiro estrutura essa escalada com precisão ao construir uma tensão crescente entre discurso e ação. Quando o grupo de Minna executa a funcionária chilena no casarão e, depois, a recepcionista do hotel, a narrativa expõe o esvaziamento de qualquer propósito político. São mortes sem justificativa dentro do próprio sistema lógico da história, fruto mais de impulsos do que de estratégia. Com isso, o filme desloca seu eixo: a crítica não recai sobre os privilegiados, mas sobre a incapacidade dos supostos agentes de ruptura de articular qualquer transformação que não se converta imediatamente em violência cega.

Esse movimento corrói a posição de Anders. Mesmo sem participação direta nos crimes, sua permanência ao lado do grupo o compromete. A expressão final do personagem, ao sorrir após o desfecho, funciona como um gesto perturbador não por sugerir alívio, mas por denunciar a completa ausência de reflexão diante da tragédia que testemunhou. O impacto é ampliado quando lembramos que a personagem assassinada no casarão deixa crianças sem mãe. A frieza com que o protagonista convive com esse fato descreve melhor sua falência moral do que qualquer diálogo possível.

As forças institucionais também se revelam frágeis. A polícia, incapaz de conectar pistas evidentes, contribui para a sensação de que todos os mecanismos de controle social estão emperrados. O grupo entra na casa com uma chave cuja origem jamais é investigada, e o reconhecimento de Minna, observado durante a abordagem da van, inexplicavelmente não se traduz em busca pública. Esse conjunto de omissões amplia a impressão de que nenhuma estrutura sustenta efetivamente a ordem, e que o colapso não depende de um grande gesto, apenas do acúmulo de pequenas negligências.

Ainda que o filme conte com escolhas estéticas marcantes e uma realização cuidadosa, a promessa de profundidade política se dissolve conforme a história avança. A violência gratuita praticada pelos insurgentes faz com que o público se distancie deles e, involuntariamente, se aproxime dos personagens ricos, que permanecem moralmente discutíveis, porém não homicidas. Esse deslocamento involuntário estabelece uma pergunta incômoda: quando uma crítica social pretende denunciar desigualdades, mas coloca os marginalizados como agentes do pior tipo de brutalidade, que tipo de reflexão se pretende estimular?

“Uma Vida Honesta” deixa ao espectador um terreno de dúvidas complexas. A trama aponta para a necessidade de repensar não apenas estruturas de poder, mas a forma como indivíduos comuns respondem ao caos quando confrontados com escolhas definitivas. O vazio ético que envolve Anders atua como um alerta sobre a facilidade com que discursos de mudança podem se desviar de qualquer responsabilidade concreta. Mesmo que o filme não alcance a densidade política que projeta, o desconforto que provoca permanece como um lembrete de que nem todo questionamento coletivo encontra respostas consistentes em quem se proclama agente de transformação.

Filme: Uma Vida Honesta
Diretor: Mikael Marcimain
Ano: 2025
Gênero: Drama/Mistério/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.