A Netflix tem um dos melhores filmes do último ano e quase ninguém percebeu Divulgação / Crea SGR

A Netflix tem um dos melhores filmes do último ano e quase ninguém percebeu

Uma correspondente de guerra aposentada recebe o diagnóstico de uma doença terminal e decide administrar o tempo que ainda tem com a mesma disciplina que aplicava em zonas de conflito. Em “O Quarto ao Lado”, essa decisão leva Martha, interpretada por Tilda Swinton, a procurar Ingrid, vivida por Julianne Moore, antiga amiga dos tempos de redação. As duas estavam afastadas havia anos, mas esse pedido específico reorganiza a convivência: Martha quer que Ingrid a acompanhe na etapa final da doença, desde exames e medicações até a preparação de uma morte assistida. O reencontro reabre lembranças e ressentimentos, mas também uma intimidade que nenhuma das duas imaginava retomar.

Dirigido por Pedro Almodóvar, “O Quarto ao Lado” adapta o romance “What Are You Going Through”, da norte-americana Sigrid Nunez, condensando capítulos inteiros em diálogos extensos e ambientes fechados. O filme trabalha com poucos cenários, quase todos ligados a rotinas de cuidado: quarto de hospital, carros, cafés, a casa alugada por Martha para o desfecho do plano. Essa contenção física serve ao próprio tema, pois a história se desenvolve nos limites impostos pelo corpo adoecido, pelo tempo encurtado e pelo pacto feito entre as duas amigas.

O enredo avança com a negociação constante desse pacto. Ingrid hesita em aceitar o pedido, mas admite que a ligação com Martha resiste ao desgaste dos anos. A escritora vive da observação, acostumada a transformar experiências alheias em matéria literária, o que gera tensão em conversas sobre passado e privacidade. Já Martha recusa sentimentalismos: é direta ao descrever o avanço da doença, organiza documentos, consulta médicos, avalia medicamentos e tenta preservar um mínimo de controle diante do que não pode evitar. A dinâmica das duas resulta em atrito e cumplicidade. Uma tenta aliviar o peso com humor; a outra preserva o foco no plano que traçou, mesmo quando o corpo já não sustenta a própria determinação.

A direção aposta na proximidade para registrar esse processo. A câmera de Edu Grau mantém rostos e mãos em primeiro plano, reforçando a importância de gestos pequenos, como o esforço para levantar um copo ou a pausa prolongada antes de uma resposta difícil. A fotografia evita contrastes fortes e prefere interiores de linhas retas, com cores discretas distribuídas entre roupas, paredes e móveis. Essa escolha reduz a presença de elementos chamativos e concentra a atenção na respiração curta de Martha, na inquietação de Ingrid e nas mudanças de humor que surgem ao longo dos dias.

A atuação de Tilda Swinton se apoia na colisão entre fragilidade física e firmeza de decisão. Martha não pede compaixão, ainda que dependa dela para atravessar os rituais de consulta, transporte e repouso. O corpo debilitado se torna parte do conflito, pois cada deslocamento exige planejamento. Julianne Moore dá a Ingrid um movimento pendular: a personagem tenta equilibrar racionalidade e afeto, mas tropeça em sua própria ansiedade. Quando precisa ajudar Martha em tarefas simples, hesita. Quando tenta aliviar o ambiente com pequenas ironias, nem sempre acerta. Essas falhas tornam a convivência mais crível e sustentam a tensão do pacto, que se renova a cada conversa.

A adaptação preserva o interesse do romance pelas conversas como mecanismo dramático. Almodóvar concentra emoções, memórias e dúvidas em diálogos longos, interrompidos por flashbacks que explicam o afastamento entre as duas. Essas breves retomadas do passado exibem viagens de trabalho, relações afetivas desgastadas e incidentes que provocaram rupturas. A montagem de Teresa Font mantém o tempo como linha de pressão: planos fixos, poucas elipses e cortes pontuais nos momentos de maior desgaste físico. Essa progressão cria a sensação de que cada decisão pesa mais do que a anterior.

A trilha de Alberto Iglesias ocupa espaço moderado. Entra em deslocamentos, some em conversas delicadas e retorna em passagens de repouso. O desenho de som privilegia ruídos simples: motores, portas abertas, utensílios médicos sendo manuseados. Esses elementos reforçam o ritmo lento da rotina de Martha e mostram como Ingrid observa cada detalhe, às vezes com inquietação, às vezes com cuidado.

Personagens masculinos aparecem em poucas cenas, entre eles Damian, escritor que cruza o caminho de Ingrid. Essas presenças ampliam a percepção de que o tema da morte assistida envolve mais gente do que as duas amigas, incluindo profissionais da saúde e figuras ligadas à burocracia do procedimento. Ainda assim, o filme volta sempre ao núcleo central, onde Martha administra remédios, revisa papéis e pede a Ingrid que leia trechos de textos antigos, gesto que reacende memórias comuns sem afastar o ponto principal da trama.

Dentro da filmografia de Almodóvar, marcada por cores fortes e conflitos familiares, “O Quarto ao Lado” se distingue pela maneira direta com que encara a finitude. Há humor em pequenas trocas de ironia, mas o peso da decisão de Martha orienta o andamento das cenas. A casa escolhida para os últimos dias acumula caixas, malas e objetos necessários ao procedimento, criando um ambiente organizado e ao mesmo tempo provisório. Ingrid circula por esse espaço tentando conciliar o cuidado que presta à amiga com a própria dificuldade em aceitar o que está por vir.

A progressão do enredo conduz a uma imagem concreta: duas mulheres cercadas por remédios, papéis e bolsas abertas, tentando decidir o que ainda pode ser controlado em meio ao avanço da doença. Essa visão final, mais prática que simbólica, condensa o que o filme acompanha desde o início e descreve a extensão do esforço das duas para manter alguma ordem enquanto o tempo diminui.

Filme: O Quarto ao Lado
Diretor: Pedro Almodóvar
Ano: 2024
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★