A morte de Nora organiza uma espécie de inventário emocional que ninguém pediu, mas que se impõe com a mesma firmeza de um documento legal encontrado tarde demais. Em “5 Dias Sem Nora“, a diretora constrói um percurso que evita sentimentalismos fáceis: a narrativa prefere o terreno da observação paciente, acompanhando José, interpretado por Fernando Luján, enquanto ele tenta decifrar uma mulher que lhe escapou até mesmo quando dividiam a mesma casa. A trama avança não pelo choque, mas pela insistência com que cada detalhe encontrado no apartamento: bilhetes, alimentos etiquetados, instruções meticulosas, desmonta a ilusão de que a convivência garante compreensão.
José inicia as tarefas burocráticas do velório acreditando estar apenas seguindo um protocolo. Logo percebe, porém, que cada etapa o obriga a enfrentar contradições acumuladas ao longo de décadas. A rigidez das normas religiosas, articulada na figura do rabino ortodoxo, amplia os conflitos internos do protagonista: sua descrença o afasta dos rituais, enquanto a memória da convivência com Nora exige algum tipo de fidelidade que não encontra nome. O filme constrói esse atrito sem dramatizações, permitindo que o desconforto avance como uma linha subterrânea que reorganiza silenciosamente as relações entre os personagens.
O passado dos dois retorna em fragmentos. As lembranças não servem para explicar Nora, mas para expor o modo como o casal lidou com rupturas que nunca foram devidamente enfrentadas. A diretora evita leituras indulgentes: a aparente ordem da casa contrasta com a instabilidade emocional que precedeu o suicídio, revelando uma existência marcada pela tentativa de controlar um mundo que lhe respondia com imprevisibilidade. A presença de Fabiana, vivida por Cecilia Suárez, amplia essa percepção, oferecendo uma perspectiva mais íntima da rotina de Nora sem transformá-la em chave interpretativa definitiva. Fabiana funciona como alguém que testemunhou dilemas que José preferiu manter em silêncio.
Ruben, interpretado por Enrique Arreola, ocupa o centro das tensões familiares com a postura de quem tenta preservar todos ao mesmo tempo. Sua devoção é evidente, mas ela o paralisa. Entre o pai, a esposa e os filhos, ele tenta conciliar expectativas incompatíveis, revelando como o luto costuma funcionar: cada um procura proteger a própria versão da história, mesmo quando isso dificulta qualquer aproximação real. É nos gestos cotidianos de Ruben que o filme questiona a ideia de que vínculos se sustentam por afinidade; muitas vezes permanecem por hábito, obrigação ou medo de desagradar.
O percurso de José é conduzido com sobriedade. Luján interpreta-o com uma contenção que se torna cada vez mais eloquente, especialmente quando ele se vê diante de informações que alteram sua leitura do passado. As descobertas sobre a vida íntima de Nora, relações, frustrações, tentativas de reorganizar a própria existência, não produzem indignação e tampouco consolo. Funcionam como um espelho desconfortável, revelando que ambos conviveram mais com versões idealizadas um do outro do que com pessoas reais.
A diretora amarra esses elementos sem apelar a soluções melodramáticas. A integração de práticas e restrições do judaísmo é feita de modo natural, como parte do cotidiano dos personagens, e não como explicação exótica de costumes. A limitação imposta pelo período do Pessach — que impede o enterro imediato, adiciona uma camada concreta ao luto: quanto mais o corpo precisa esperar, mais as relações se expõem. A suspensão do rito força todos a permanecerem próximos justamente quando prefeririam se afastar.
Ao final, o que se revela não é uma compreensão definitiva de Nora, mas a constatação de que o desejo de ordenar a própria vida não protege ninguém do imprevisível. Cada personagem tenta garantir uma coerência mínima às suas escolhas, como se um gesto organizado pudesse compensar aquilo que escapou ao controle. “5 Dias Sem Nora“ se sustenta nessa fricção entre planejamento e desordem, construindo um retrato de pessoas que descobrem tarde demais que convivência não é sinônimo de clareza. O filme permanece não pela intensidade dos conflitos, mas pela precisão com que observa a dificuldade humana de reconhecer o outro para além das versões que criamos.
★★★★★★★★★★


