Tantas vezes celebrado como a força que move o homem, o progresso corre feito um trem a todo vapor, deixando atrás de si um rastro de maravilhamento e destruição, enquanto vidas comuns tentam decifrar o sentido da marcha. Histórias de culpa e trauma, ausência e silêncio, mas também memórias doces de uma vida sem sabor em grande parte da jornada deslizam nos caminhos de ferro mundo afora, fazendo os viajantes irem bem mais longe do que queriam. Clint Bentley cristaliza essa ideia de fusão do ordinário com o sublime em “Sonhos de Trem”, uma crônica sobre as inexoráveis reviravoltas do destino a que todos estamos sujeitos e de que maneira podemos nos defender delas. Inspirando-se na famosa novela homônima de Denis Johnson (1949-2017) publicada em 2011, Bentley e o corroteirista Greg Kwedar ilustram palavras com imagens que evocam mesmo uma atmosfera onírica, galvanizadas por um ator em estado de graça.
Joel Edgerton é a própria encarnação do pensamento estoico ao dar vida a Robert Grainier, o operário de uma linha férrea encarregado de derrubar árvores e instalar estribos que sua sangue pelo desenvolvimento dos Estados Unidos do começo do século 20. Na América profunda, num tempo em que a luta pela sobrevivência apagava quaisquer laivos de preocupação com delicadezas supérfluas a exemplo de inclusão social, justiça, respeito às diferenças, civilidade, Grainier é um humanista sem rótulos e sem autopromoções, que vê campear a iniquidade, mas quase nada pode fazer. Na versão original, Will Patton leva uma narração plena de atávica melancolia por meio da qual frisa a invisibilidade e a desimportância do personagem nos rumos da nação que ajuda a construir, paradoxo que atravessa o filme e se estabelece como gancho para situações ainda mais aflitivas. Patton é o superego de Grainier, acusando suas supostas culpas e seus desejos, esmiuçados por Bentley a partir do assassinato de Fu Sheng, um imigrante chinês que só queria um lugar ao sol no país das oportunidades.
Esse é um dos muitos fantasmas a assombrar Grainier, que encontra refúgio junto a Gladys e na filha recém-nascida do casal. O diretor volta alguns anos e registra a aproximação dos dois, aludindo ao Terrence Malick de “A Árvore da Vida” (2011) e “Cinzas no Paraíso” (1978). Grainier e a esposa parecem ter sido feitos um para o outro, clichê que Bentley trabalha com habilidade em cenas como a que mostra o ferroviário demarcando o terreno onde erguerá a nova casa da família, sacada que Walter Salles também concretizou em “Ainda Estou Aqui” (2024). Odisseia de um Ulisses sem glórias, “Sonhos de Trem” é a elegia do herói possível: os homens comuns que erigem impérios. E ninguém conhece.
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