Novo filme da Netflix com Felicity Jones é um dos mais esperados do ano e promete ser a atração do seu fim de semana Divulgação / Black Bear

Novo filme da Netflix com Felicity Jones é um dos mais esperados do ano e promete ser a atração do seu fim de semana

O primeiro contato com “Sonhos de Trem” impõe uma leitura que ultrapassa a superfície contemplativa frequentemente associada a narrativas ambientadas na fronteira entre natureza e expansão industrial. A adaptação conduzida por Clint Bentley e Greg Kwedar parte da trajetória de Robert Grainier, vivido por Joel Edgerton, para examinar com rigor a transformação de uma sociedade que avança sem se dar conta das ruínas que produz. Em vez de apostar em sentimentalismo ou em metáforas fáceis, o filme organiza um percurso narrativo que combina a brutalidade material do final do século 19 com a lenta sedimentação das perdas individuais. A locomotiva que corta montanhas e rasga florestas funciona como ponto de inflexão para as escolhas desse personagem, que, sem heroísmo, tenta compreender a própria permanência num mundo que muda depressa demais.

A infância conturbada de Robert não pretende suscitar piedade. Funciona como demonstração de como a precariedade era regra num tempo em que sobrevivência equivalia à capacidade de adaptar-se a ofícios desgastantes. Quando, já adulto, ele integra as equipes de lenhadores e construtores lideradas por veteranos como Arn Peeples, interpretado por William H. Macy, fica evidente que o progresso no qual todos dizem acreditar cresce amparado por esforço físico extremo e por uma moralidade que oscila perigosamente entre camaradagem e indiferença. Esses grupos não celebram o avanço do país; apenas obedecem à necessidade de seguir, dia após dia, derrubando árvores, abrindo trilhas e manipulando explosivos. A inserção de personagens como Clifton Collins Jr e Paul Schneider reforça a dimensão de incerteza constante, em que cada temporada pode significar ascensão rápida, ruína súbita ou a mera repetição do mesmo ciclo exaustivo.

A dinâmica muda quando Robert encontra Gladys, papel de Felicity Jones. O encontro não é romantizado. Surge como ponto de estabilidade possível, algo próximo de uma pausa na voragem de deslocamentos e contratações temporárias. A cena em que os dois delimitam com pedras o espaço onde pretendem levantar a própria casa deixa claro que o filme se interessa mais pelo gesto do que pela promessa. Ali, o espectador percebe que, para além da dureza do cotidiano, existe a aspiração a uma vida minimamente organizada, reforçada pela chegada de Kate, a filha do casal. O breve período de convivência não sustenta a pressão da distância imposta pelas longas temporadas de trabalho. O retorno de Robert ao lar funciona como marcador de tempo psicológico, lembrando constantemente o quanto se perde quando a economia exige ausências prolongadas.

O desaparecimento de Gladys e Kate, provocado por um incêndio devastador, não recebe elaboração melodramática. A narrativa conserva a secura necessária para que a tragédia cumpra seu papel como ponto de ruptura. A partir daí, a reclusão de Robert se torna não apenas compreensível, mas inevitável. Edgerton constrói esse isolamento sem recorrer a sinais exteriores de loucura ou excentricidade. Ele reduz o personagem a gestos mínimos, aguçando a percepção de que o silêncio é o único meio que encontra para reorganizar o caos interno. Em seus deslocamentos esporádicos, ele se depara com Ignatius Jack, interpretado por Nathaniel Arcand, cuja generosidade inesperada expõe uma ética subterrânea que atravessa a narrativa: a solidariedade, quando aparece, não se anuncia, apenas se exerce.

O episódio envolvendo Fu Shang, vivido por Alfred Hsing, amplifica o conflito moral que atravessa a biografia de Robert. A incapacidade de impedir a violência sofrida pelo colega funciona como cicatriz permanente, alimentando os sonhos fragmentados que dão nome a “Sonhos de Trem”. Esses sonhos não são visões místicas nem delírios explicativos. Operam como reencontros involuntários com passagens que ele preferiria apagar, mas que insistem em reorganizar sua memória segundo códigos próprios. O filme acerta ao evitar qualquer forma de redenção explícita. Robert não busca compensar erros, apenas tenta conviver com aquilo que não pôde evitar.

A construção visual prefere enquadramentos que captam a rigidez do personagem. A câmera de Adolpho Veloso utiliza a paisagem do Noroeste do Pacífico como extensão do conflito interno de Robert: árvores colossais derrubadas para levantar pontes, rios que seguem seu curso apesar da devastação, montanhas que funcionam como testemunhas indiferentes da sucessão de vidas marcadas por esforço físico extremo. O ambiente não é tratado como força espiritual, mas como registro material de um país em transformação. A trilha assinada por Bryce Dessner, com participação pontual da canção Train Dreams, de Nick Cave, reforça essa atmosfera de deslocamento contínuo, evitando sentimentalismo e privilegiando pausas longas que ampliam a introspecção.

As interações esparsas com personagens secundários ampliam o entendimento de como Robert se percebe, ou tenta se perceber, dentro de um país que privilegia velocidade e acúmulo. Kerry Condon, em participação breve, sintetiza esse conflito ao afirmar que uma árvore morta mantém a mesma importância da árvore viva. A frase, longe de efeito poético gratuito, sintetiza o raciocínio central da narrativa: cada vestígio, mesmo aquele que já cessou de gerar vida, participa da construção do espaço que nos cerca. No filme, pessoas e paisagens recebem tratamento semelhante. Nada é descartado; apenas deslocado no tempo.

“Sonhos de Trem” funciona melhor quando se distancia de julgamentos fáceis e oferece o retrato de um homem que tenta sustentar algum sentido num terreno que se altera mais rápido do que ele consegue compreender. A força do filme está na recusa em transformar a dor em espetáculo ou a contemplação em enfeite. Seus momentos mais potentes surgem da constatação de que existir é, em grande medida, suportar a passagem do tempo com dignidade possível. E, ao acompanhar Robert até esse ponto, o filme sugere que a grandeza não está na superação, mas na persistência silenciosa diante do que não oferece garantias.

Filme: Sonhos de Trem
Diretor: Clint Bentley
Ano: 2025
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.