Atravessar o território emocional de “Sonhos de Trem” é como embarcar num vagão antigo que insiste em lembrar ao passageiro que o movimento nunca é apenas deslocamento: é uma prova silenciosa de que viver implica enfrentar forças que não controlamos. A direção de Clint Bentley se apoia nessa lógica quase ritualística ao acompanhar Robert Grainier, interpretado por Joel Edgerton, um lenhador dedicado ao trabalho na ferrovia em 1917. Ele é um homem marcado por uma contenção que não brota de frieza, mas de um esforço contínuo para manter a própria vida em ordem diante de um país que se transforma mais rápido do que qualquer ser humano consegue acompanhar. A presença de sua esposa, encarnada por Felicity Jones, e da filha pequena é tratada como eixo afetivo, mas nunca como adorno: o filme enxerga a família exatamente como Robert a percebe, um ponto de ancoragem que ameaça dissolver-se a cada trem que passa.
A narração de Will Patton funciona como uma espécie de consciência paralela, um filtro que amplia o alcance emocional do protagonista sem jamais roubar-lhe o silêncio. É um recurso que poderia facilmente recair no didatismo, mas aqui atua como contraponto poético às paisagens amplas e às pressões históricas que cercam o personagem. Bentley utiliza essa voz para sugerir que a trajetória de Robert não é apenas biográfica, mas parte de um período em que trabalhadores eram empurrados para a margem enquanto a construção da modernidade avançava de forma impiedosa. A discriminação contra imigrantes durante a Primeira Guerra surge não como lição moral, e sim como sintoma de uma sociedade que escolhe seus alvos conforme o vento político da época.
Os colegas de Robert reforçam esse retrato de precariedade. William H. Macy surge numa participação curta, mas memorável, quase como personificação da resignação coletiva que dominava os canteiros de obras ferroviárias. É aquele tipo de personagem que se mantém no limite: não protagoniza a narrativa, mas concentra nuances suficientes para revelar o desgaste psicológico de quem vive a serviço de algo que nunca verá concluído. Algo crucial no filme é justamente nessa capacidade de tornar cada figura, por menor que seja, uma peça indispensável para que o conjunto respire.
A transformação do território é tratada com uma lucidez desconcertante. A derrubada das árvores, a abertura de trilhos e a repetição industrializada do ato de cortar madeira formam uma sequência quase hipnótica, que sublinha a contradição central da história. Progresso e aniquilação dividem o mesmo espaço, como se os trabalhadores, ao prepararem o caminho para o trem, também assinassem a sentença de morte de um modo de vida inteiro. Robert conhece essa ferida de perto, e o roteiro deixa isso claro sem dramatizações excessivas: as escolhas dele se tornam cada vez mais silenciosas, mas nunca menos carregadas de sentido.
O filme não se limita ao retrato social. Ele mergulha na tênue fronteira entre racionalidade e mito, especialmente quando Robert tenta decifrar as perdas que o atingem. Sua relação com a natureza adquire contornos de obsessão, não por fuga, mas por uma tentativa quase visceral de reconhecer-se no que ainda resta intacto. A câmera insiste em capturar esse elo, sugerindo que a paisagem não responde, mas devolve ao protagonista a mesma perplexidade que ele carrega. É nesse ponto que Joel Edgerton alcança um desempenho raro, sustentado por mínimas expressões e uma fisicalidade que traduz a erosão interna de um homem que já não acompanha o ritmo do país ao redor.
Felicity Jones, mesmo com menos tempo de tela, projeta uma presença que atravessa todo o filme. Ela funciona como memória e ferida, como lembrança que escapa aos limites do real. Não se trata de romantizar um trauma, e sim de compreender que algumas experiências se prolongam a ponto de moldar o que uma pessoa acredita ser possível. “Sonhos de Trem” trabalha esse aspecto com maturidade e sem sentimentalismos vazios, conferindo à história uma densidade que nunca pesa, porque nasce de algo inevitável: o confronto com o inesperado.
O filme levanta uma espécie de pergunta que não se resolve: o que se perde quando um país acelera demais, e o que acontece com aqueles que não conseguem acompanhar o impulso coletivo? Robert Grainier é um desses que continuam caminhando, mesmo quando o caminho já não existe. Essa persistência, tão solitária quanto reveladora, transforma “Sonhos de Trem” num relato que desafia explicações fáceis. Não pelo mistério em si, mas porque recorda que a grandeza de uma vida comum pode ecoar tão fortemente quanto qualquer epopeia grandiosa. E quando as luzes da sala acendem, resta a sensação de que acompanhar esse homem foi menos assistir a uma história e mais reconhecer, em silêncio, a estranha beleza de existir.
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