O cotidiano de Benny gira em torno da oficina mecânica e da casa que divide com a irmã Joon, jovem com transtorno psiquiátrico que alterna explosões de irritação, rotinas rígidas e gestos inesperados de afeto. Órfão desde cedo, ele assume a função de responsável legal, administra remédios, consultas e negociações com cuidadores que raramente permanecem tempo suficiente. A vida do irmão parece guiada pela prevenção de crises e pelo controle de qualquer mudança que ameace essa frágil estabilidade doméstica.
Lançado no Brasil com o título “Benny & Joon — Corações em Conflito”, dirigido por Jeremiah S. Chechik e estrelado por Johnny Depp, Mary Stuart Masterson e Aidan Quinn, o longa acompanha esse arranjo até a entrada de Sam, parente distante de um amigo que acaba hospedado na casa após um acordo impensado. Sam não tem formação específica, não possui emprego fixo e se comunica sobretudo por meio de pequenas pantomimas inspiradas no cinema mudo, o que o aproxima de Joon e altera o equilíbrio interno entre cuidado, liberdade e medo de perda.
A partir da chegada do hóspede, a narrativa passa a observar detalhes de convivência que revelam a diferença entre proteção e tutela rígida. Benny continua a planejar a rotina em torno de horários, listas e compromissos médicos, enquanto Sam e Joon inventam maneiras próprias de lidar com o tempo, com tarefas domésticas e com o espaço urbano, visto por eles como território de descoberta e risco moderado. O conflito principal nasce do choque entre essas duas lógicas de vida e da pergunta sobre quem tem o direito de decidir qual delas prevalece.
O registro de comédia romântica aparece no vínculo que se forma entre Sam e Joon, construído por gestos cotidianos, brincadeiras físicas e uma escuta que não reduz a jovem à condição de paciente. Johnny Depp interpreta Sam com base em um trabalho corporal que recupera figuras de Buster Keaton e Charlie Chaplin, em quedas calculadas, truques com objetos simples e uso da cozinha e da rua como palcos improvisados. Essa fisicalidade introduz humor nas cenas em que o tema da saúde mental poderia derivar para a gravidade absoluta, sem ignorar a vulnerabilidade que acompanha essa condição.
Mary Stuart Masterson constrói uma Joon que hesita entre aceitar a presença de terceiros e reagir com desconfiança a qualquer interferência em sua rotina. O filme evita delimitar um diagnóstico explícito, prefere mostrar comportamentos: crises de ansiedade, dificuldade de lidar com mudanças repentinas, necessidade de regras próprias para sentir segurança. A interpretação destaca a inteligência da personagem, seu domínio de habilidades específicas e o prazer que encontra em pequenas atividades, o que impede uma leitura que restringiria a jovem a um quadro clínico abstrato.
Aidan Quinn interpreta Benny como homem dividido entre culpa e obrigação. Cada decisão em relação à irmã parece moldada pelo medo de repetir falhas do passado ou de ser julgado por vizinhos, médicos e assistentes sociais. O roteiro o coloca diante de encruzilhadas sucessivas: aceitar ajuda externa, permitir que Joon participe de atividades fora do circuito doméstico, admitir ou não o relacionamento dela com Sam. Essa cadeia de decisões deixa claro que o conflito não se resume a um triângulo romântico, mas envolve também burocracias, protocolos de tratamento e o peso de uma responsabilidade assumida ainda na juventude.
A direção de Jeremiah S. Chechik aposta em espaços reconhecíveis do cinema norte-americano dos anos 1990: oficina, casa de subúrbio, cafeterias de bairro, ruas tranquilas percorridas a pé ou de carro. A fotografia prefere luz suave e cores quentes, o que reforça a sensação de mundo levemente amortecido, distante de ambientes hospitalares frios ou ameaçadores. Esse desenho visual suaviza os contornos mais duros da história e cria uma espécie de bolha em que excentricidades podem coexistir com regras de convivência, desde que alguém esteja disposto a negociar limites.
Nesse contexto, a trilha sonora cumpre função de marcador de tom, alternando canções românticas e temas instrumentais discretos. Em cenas de maior tensão, o som se retrai, permitindo que silêncios e barulhos cotidianos de pratos, ferramentas e passos indiquem o grau de conforto ou desconforto entre os personagens. O contraste entre sequências musicalizadas e momentos quase mudos reforça a presença do cinema clássico de comédia física como referência para o relacionamento entre Sam e Joon.
O filme trata a saúde mental a partir da experiência concreta de convivência, mais do que por diagnósticos ou discursos médicos. Mostra tentativas de internação, reuniões com profissionais e discussões sobre medicação, mas reserva mais tempo de tela às negociações íntimas entre irmãos e às conversas em que cada personagem tenta explicar seus limites. A narrativa não ignora o risco de romantização, especialmente quando associa criatividade e humor à condição de Joon, porém apresenta também episódios em que essa mesma condição provoca isolamento, medo e exaustão.
Ao privilegiar interiores, trajetos curtos e encontros em pequenos comércios, “Benny & Joon — Corações em Conflito” concentra o drama em espaços onde o olhar alheio pesa sobre qualquer gesto fora do padrão. O roteiro enfatiza como comentários de conhecidos, sugestões de vizinhos e intervenções de profissionais interferem na dinâmica entre os três protagonistas. Cada visita de avaliadores ou cuidadores temporários reabre a discussão sobre a capacidade de Benny de sustentar sozinho o cuidado com a irmã e sobre a legitimidade de Sam nesse arranjo familiar improvisado.
Nas atuações, o trio central funciona como eixo que sustenta o equilíbrio entre comédia, romance e drama doméstico. O olhar de Benny, frequentemente tenso, contrasta com a leveza performática de Sam e com as reações rápidas de Joon, o que produz combinações variadas de diálogo e silêncio em cada cena compartilhada. Personagens secundários reforçam essa dinâmica ao oferecer alternativas de encaminhamento institucional ou de afastamento, sugerindo que o vínculo entre os três se mantém sempre sob risco de ruptura imposta por agentes externos.
Na parte final da narrativa, “Benny & Joon — Corações em Conflito” mantém o foco em pessoas que tentam improvisar vínculos estáveis em cenário de regras rígidas e recursos emocionais limitados. O filme não propõe solução abrangente para o tema da saúde mental, mas acompanha com atenção o modo como escolhas de moradia, trabalho e afeto se encadeiam no dia a dia desses personagens. A última impressão é a de que qualquer rearranjo futuro dependerá da disposição concreta de dividir tarefas, escutar medos e admitir que nenhuma forma de cuidado se mantém intacta diante de mudanças sucessivas.
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