Últimos dias na Netflix: longa que escancarou o colapso de um país enquanto narrou a história de uma das maiores bandas dos anos 1980

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A inquietação que envolve “Straight Outta Compton” nasce menos da violência explícita ou das tensões sexuais que tantos comentários reducionistas parecem enxergar, e mais da dificuldade coletiva de lidar com um espelho que devolve, sem delicadezas, uma parte pouco conveniente da história recente dos Estados Unidos. A narrativa pulsa com a energia de quem tentava transformar sobrevivência em linguagem e trauma em discurso, mas muita gente insiste em transformar esse movimento em um julgamento moral raso, como se as contradições desses jovens pudessem ser separadas do ambiente que moldou cada um deles. O incômodo gerado por tantos espectadores não está exatamente nas cenas que eles dizem rejeitar, e sim no fato de que o filme reconstrói um território onde injustiça, brutalidade policial e racismo estruturavam a vida cotidiana de toda uma geração. É mais fácil acusar o longa de “excessos” do que encarar o quanto esse passado continua a se infiltrar no presente.

A força de “Straight Outta Compton” não está em maquiar nada. O filme dedica atenção a um período em que a promessa americana já soava envelhecida demais para aqueles que não foram convidados a desfrutar dela. Em vez de criar uma projeção higienizada dos integrantes do N.W.A., a narrativa opta por tensionar os espaços em que juventude, fúria e vulnerabilidade se cruzam. O que muitos chamam de “depravação” revela-se, na verdade, um mecanismo de fuga diante de uma cidade que tratava seus jovens negros como suspeitos permanentes. Ao reduzir toda essa complexidade a moralismo barato, os críticos que se prendem às cenas de sexo ignoram a dimensão simbólica de um grupo que encontrou no rap um ponto de fuga possível. Esse som carregava a violência que os envolvia, não porque a celebrasse, mas porque era impossível ignorá-la quando o país fazia de tudo para fingir que ela não existia.

O filme também examina a estranha alquimia entre talento e ascensão social, observando como fama, dinheiro e tensão interna corroem vínculos que antes pareciam indestrutíveis. Não há tentativa de santificar ninguém; tampouco existe o impulso pueril de transformar todos em vilões. A narrativa sustenta um olhar que entende a precariedade emocional daqueles jovens e, ao mesmo tempo, não os absolve por completo. Esse equilíbrio desconfortável é justamente o que torna a experiência tão rica. Assistir ao grupo se esfacelar não provoca apenas tristeza, mas uma reflexão amarga sobre o custo emocional da visibilidade quando ela surge como prêmio tardio para quem cresceu à margem. O filme reconhece que cada conquista tinha um preço alto, e que a estrutura que os esmagava continuava intacta, mesmo quando eles já eram celebrados mundialmente.

As tensões raciais, especialmente a violência policial, aparecem como uma ferida sempre aberta. Não se trata de inseri-las como comentário externo; elas são o fio que costura os conflitos internos do N.W.A., impactando decisões, rompendo alianças e moldando a raiva que explodia nas letras. O que tantos espectadores chamam de “linguajar impróprio” não é adereço estilístico, mas resposta visceral a um Estado que tratava corpos negros como território de guerra. Fingir que esse contexto é dispensável é mais uma forma de manter intacta a fantasia de que desigualdade se resolve com bons modos e cordialidade. “Straight Outta Compton” arranha esse conforto com precisão desconcertante, e talvez por isso incomode tanto.

É curioso observar como alguns comentários se declaram incapazes de compreender o filme porque não dominam a linguagem do rap, como se fosse necessário um glossário para reconhecer o valor humano de uma história sobre resistência. Esse argumento expõe uma recusa deliberada em compreender culturas que não nasceram nos mesmos códigos sociais. O estranhamento vira justificativa para o preconceito, transformando a falta de familiaridade em suposta evidência de inferioridade artística. No fundo, essa postura apenas reforça o que o filme denuncia: a tendência de tratar determinadas vozes como ruído, e não como expressão legítima de uma experiência coletiva.

O mais irônico é que muitos dos que atacam o filme por “vulgaridade” parecem incapazes de perceber que sua própria reação é produto das desigualdades que a obra escancara. É cômodo rejeitar o que provoca, porque esse gesto inocenta o espectador de qualquer responsabilidade histórica. Mesmo quando o filme explora as contradições internas do grupo, ele deixa claro que nada floresce no vácuo. O excesso que tantos enxergam é, na verdade, o retrato de uma juventude submetida a pressões que poucos se dispõem a admitir. Negar esse contexto é recusar não só o filme, mas a própria realidade que ele expõe.

“Straight Outta Compton” não funciona como aula de moral; também não pretende suavizar a rugosidade da vida daqueles jovens. O que ele constrói é um retrato pulsante de um grupo tentando reorganizar o próprio destino enquanto enfrentava um país que preferia silenciá-los. A crítica que se limita a condenar corpos em movimento perde a chance de entender o impacto histórico dessa trajetória. Há quem assista esperando pureza, mas o filme devolve humanidade imperfeita, contraditória, urgente. E isso basta para demonstrar que o incômodo de muitos não é com o que veem na tela, mas com o que não conseguem encarar fora dela.

Filme: Straight Outta Compton
Diretor: F. Gary Gray
Ano: 2015
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★