O cigarro aceso tremendo um pouco entre os dedos, a boca firme de batom, o vestido justo grudado no corpo pela luz quente do estúdio. Em volta, cabos no chão; uma assistente gira o pedestal da câmera; o operador testa o foco; o diretor levanta a mão sem pressa. No monitor, a imagem está pronta, lisa, luminosa. Do lado de cá, ela sente o suor escorrendo pelas costas, o cheiro de laquê e poeira, a vertigem discreta de existir apenas naquele retângulo luminoso. Anos depois, sob outra luz e outra magreza, a mesma mulher voltaria a essa tela para dizer uma frase que faria o país engolir em seco.
Sandra Bréa nasceu no Rio em 1952, cidade de maresia insistente e promessa de ascensão rápida. O pai, militar americano; a mãe, costureira, atriz amadora, pequena funcionária de sonho maior. A menina logo passa a andar de ônibus sozinha, a decorar texto, a esperar chamada. Aos treze, já posa como modelo de publicidade, rosto limpo, sorriso obediente. Aos quatorze, entra no teatro de revista: pernas à mostra, piadas repetidas, plateias masculinas em mesas apertadas. A adolescência se resolve ali, entre coxias e fumaça de cigarro, o corpo observando as cadeiras, entendendo aos poucos que olhar nenhum é inocente.
Um diretor de teatro a vê em cena num desses espetáculos menores. Ele precisa de um ajuste de elenco. A presença da garota segura a atenção, o corpo tem ritmo próprio, o rosto se adapta ao que pedem. Em 1968, ela entra no elenco de “Plaza Suite”; em 1970, chega à televisão, em “Assim na Terra Como no Céu. A televisão ainda é novidade capaz de reunir a família na sala; a ditadura já organiza o país por dentro, regulando o que se pode ver e ouvir. Ela entra nesse circuito pela porta lateral, a da jovem bonita que ilumina o quadro e fala pouco.
Poucos anos bastam para que o nome se espalhe. Em “O Bem-Amado”, Sandra é Telma, moça que atravessa a praça fictícia de Sucupira com um andar que a câmera acompanha sem pudor. Em novelas posteriores, em quadros de humor, em programas de auditório, ela se torna presença constante. Pele bronzeada, cabelo armado, cintura marcada: cada detalhe colabora para construir uma promessa de prazer controlado num país sob tutela. Enquanto generais assinam atos em gabinetes fechados, o entretenimento cuida de desviar o olhar. O corpo dela entra ao vivo nesse acordo.
No cinema, o movimento é paralelo. As salas exibem pornochanchadas, comédias picantes que garantem bilheteria enquanto empurram para o canto qualquer discussão séria sobre sexo, poder, violência. Sandra aceita esses papéis. Faz cenas de nudez em casas alugadas por diária, gravando entre um avião que passa e o cachorro do vizinho que não para de latir. Divide camarim apertado com colegas igualmente etiquetadas. Às vezes, o roteiro é ridículo; às vezes, há lampejos de invenção. Em entrevistas, fala em liberdade, repete que não tem vergonha do corpo, que gosta de trabalhar, que quer papéis mais densos. Do outro lado da mesa, o repórter confere o gravador e volta à lista de sempre:

— E o calor desse figurino? O marido não sente ciúme?
Ela compõe a própria figura dia após dia, entre o espelho do camarim e as fotos ensaiadas para revistas masculinas. A imagem se cristaliza em manchetes: símbolo sexual, deusa do verão, fantasia nacional. Há dinheiro, convites, cartas de fãs empilhadas em caixas de papelão. Há também uma solidão que cresce na mesma proporção. No fim das gravações, ela chega a um apartamento que não está em cena; tira os cílios postiços, lava o rosto, prepara qualquer comida simples. O silêncio da casa não se parece em nada com o som contínuo da televisão ligada.
Com a década de 1980, a abertura política avança, lenta, cheia de recuos. A censura oficial perde força, mas o controle muda de mãos. A emissora que ajudou a fabricar Sandra precisa renovar o catálogo de rostos, correr atrás de outro tipo de juventude. Novelas se sucedem; algumas ainda a incluem, outras já não. O telefone toca menos. Para uma atriz cuja identidade foi vinculada ao vigor físico, cada pequena ausência pesa nos ossos. O desejo que a TV fabricou passa a gerar substitutas mais novas em tempo recorde.
Nesse intervalo, o mundo inteiro começa a lidar com uma nova doença. Notícias vagas sobre um vírus que atinge, primeiro, certos grupos, depois todos. Os jornais falam em peste moderna, em castigo, em perigo. Os hospitais enchem de casos; as famílias escondem diagnósticos; a televisão prefere campanhas tímidas, com desenhos e metáforas neutras. A palavra Aids circula carregada de pavor e julgamento. É nesse cenário que, em 1992, Sandra recebe o próprio exame positivo.
A notícia cheira a consultório frio, papel ofício, olhar enviesado do profissional de saúde. Ela volta para casa carregando um envelope e um peso que não cabe em nenhum papel timbrado. Sabe o que a imprensa faz com mulheres que fogem do roteiro esperado; sabe o que o país costuma fazer com quem adoece em público.
Apesar disso, um ano depois, decide falar. Em 1993, sentada diante de câmeras que já conhecem cada gesto dela, arruma o microfone, inspira fundo e avisa, quase num tom de recado: tem Aids e muita saúde, agradece a Deus, não pretende se esconder.
O efeito é imediato.
Em mesas de jantar, a confissão vira assunto sussurrado. Na imprensa, as matérias usam o termo corajosa, mas carregam um tom de espetáculo involuntário. Nas redações, alguns editores discutem em voz baixa se ainda convém chamá-la para a novela seguinte. Os convites praticamente cessam. A mesma corporeidade que garantiu trabalho durante anos, agora associada ao vírus, passa a carregar o que a moral recusa. Para não encarar o próprio medo, muitos preferem manter distância. O elenco que antes a recebia como par começa a mencioná-la no passado.
Ela passa a viver em ritmo desigual. Entre internações e exames, cuida de plantas, organiza arquivos, tenta manter a rotina das pequenas coisas. Concede entrevistas esparsas, reclama do preconceito de vizinhos, lembra que o vírus não pega em abraço, que medo não é desculpa para humilhar ninguém. Fala de fé sem pieguice, de desejo de continuar em cena, de projetos que ninguém financia. Do outro lado, o país acelera: euforia de Plano Real, novela cheia de efeitos especiais, programas de auditório cada vez mais estridentes.
Quando o câncer de pulmão se declara, a equação muda de forma brusca. Depois de cirurgias e laudos, ela recebe a proposta de quimioterapia e radioterapia. O corpo já percorreu muitos corredores de hospital. A ideia de prolongar alguns meses à custa de mais dor não a convence. Escolhe ficar em casa. A decisão não encaixa em roteiros de superação, tampouco nas expectativas religiosas de sacrifício sem queixa. Ainda assim, é decisão.
Nos últimos meses, a casa em Jacarepaguá concentra a vida possível. Alguns amigos insistem em visitas, lembram histórias de gravação, levam frutas, medicamentos, consolo desajeitado. Outros desaparecem por pudor, medo, incapacidade de olhar a própria fragilidade refletida naquele rosto afinado. A televisão, que um dia fez questão de cada movimento de Sandra, agora passa tardes inteiras sem lembrar que ela existe. A cidade continua barulhenta, o trânsito atravanca as vias expressas, o mar segue batendo em Copacabana; nada disso entra pela janela com a mesma força de antes.
Em maio de 2000, aos 47 anos, o corpo em falência dá fim ao que o país insistiu em tratar como espetáculo. A morte vem em casa, depois confirmada como consequência do câncer; a Aids, que ocupou as manchetes, aparece agora em segundo plano. As notas de jornal que registram o fim alternam elogios protocolares a antigos trabalhos, adjetivos gastos, frases mornas sobre luta. Algumas mencionam a coragem de ter assumido o HIV; poucas encaram de fato o abandono que se seguiu.
Com o passar dos anos, a memória coletiva seleciona o que deseja guardar. Reprises de novelas exibem cenas em que Sandra entra sorrindo numa sala cenográfica, de biquíni ou vestido colado, um copo na mão. Canais de nostalgia na internet compartilham fotografias de bastidor, capas de revista, trechos de filmes. Nos comentários, elogios à beleza, lembranças de adolescências distantes, piadas saudosas. O HIV vira nota de rodapé, ou curiosidade esfregada em listas de tragédias pessoais.
Os poucos livros que levam o nome dela na capa não mudam esse quadro. São biografias de circulação restrita, montadas sem fôlego crítico, mais interessadas em curiosidades e episódios de bastidor do que em acompanhar com rigor o trabalho e a vida. A história dessa atriz que atravessou teatro de revista, pornochanchada, novela das oito, entrevistas sobre Aids e um câncer terminal num apartamento longe dos estúdios segue sem estudo à altura, espalhada em recortes de jornal, reprises ocasionais e memórias avulsas. Partes do acervo pessoal se perderam em instituições sem catalogação decente. Sepultada primeiro num jazigo alugado, teve os restos transferidos anos depois para um ossário à espera de melhor arranjo. A trajetória inteira parece ter sido negociada sob a mesma lógica de uso e descarte que organizou o primeiro figurino.
Ainda assim, quem pausa a reprise numa cena qualquer percebe algo que não envelhece. Há uma atenção rara na forma como ela ouve o colega em cena, um controle quase invisível da respiração, um humor seco no canto da boca. A inteligência que pediu outros papéis todos esses anos ainda pulsa sob o personagem previsto. Talvez valha trazer essa camada à tona. Não por redenção póstuma, tampouco pelo gosto duvidoso de remontar ídolos caídos, mas para que, ao encarar de novo aquele retângulo luminoso, alguém se lembre também da vida inteira que ficou do lado de fora do quadro.
