“Retrato de uma Jovem em Chamas” cria um tipo de fascínio raro: aquele que não começa no enredo, mas na vibração que antecede qualquer palavra. Existe algo quase insolente na forma como o filme se recusa a oferecer pressa ao espectador, como se dissesse que certas experiências não suportam atalhos. A lentidão inicial, tão mal interpretada por quem espera estímulo imediato, funciona como um ritual silencioso para aproximar o olhar daquilo que realmente importa: dois corpos que aprendem a se reconhecer antes de se tocar. É uma calma carregada, semelhante àquela que antecede uma revelação, não a de roteiro, mas a que transforma quem observa.
A pintura, aqui, não aparece como mero recurso simbólico, e sim como um pacto. Marianne (Noémie Merlant) não tenta apenas fixar Héloïse (Adele Haènel) na tela; tenta entender a lógica particular que determina seus gestos, seus silêncios, seus receios e a tímida euforia que ela mal admite sentir. Esse processo se confunde com o próprio nascimento do afeto entre as duas. O filme constrói essa equivalência com uma precisão quase matemática: cada pincelada corresponde a uma descoberta, cada correção no retrato ecoa uma revisão interna das próprias certezas. É por isso que o mito de Orfeu não comparece como erudição vazia, e sim como espelho de escolhas afetivas tão antigas quanto o amor e tão contemporâneas quanto a autonomia feminina. Há algo de profundamente político na recusa de olhar para trás, mas também uma doçura triste no desejo de preservar aquilo que nunca será plenamente recuperado.
A ausência de trilha sonora reforça essa intimidade quase feroz. O silêncio, longe de ser um vazio, funciona como um território compartilhado em que pequenas inflexões ganham uma força inesperada. O olhar de Héloïse, por exemplo, tem a contundência de uma declaração; o de Marianne, a hesitação curiosa de quem enxerga um caminho que ainda não sabe nomear. Quando a música finalmente surge, não preenche uma lacuna: interrompe um fôlego. É como se o filme tivesse esperado o momento exato em que o espectador já estivesse treinado para ouvir tudo, inclusive o que não é dito. A relação entre pintura, ritmo e melodia constrói um triângulo sensorial raro, tão discreto que quase passa despercebido, tão potente que ninguém sai ileso.
A narrativa também respira um comentário social que não se impõe, mas permanece onipresente. A aristocracia que controla o destino de Héloïse nunca aparece como caricatura; ela se insinua na decoração, nas regras implícitas da casa, nos compromissos que não podem ser questionados. Marianne, por sua vez, conhece bem os limites impostos ao talento feminino: ela cria, experimenta, ousa, mas não tem o direito de assinar o próprio nome com a mesma autoridade que os homens ao seu redor. Nada disso precisa ser sublinhado porque está entranhado em cada decisão que as personagens tomam. O filme lida com esse cerceamento sem paternalismo, com a elegância de quem sabe que a repressão não grita, ela respira junto.
Essa sensibilidade também aparece na relação com o tempo. A diretora Celine Sciamma não se interessa pela pressa sobretudo porque a paixão entre as protagonistas exige cuidado, não aquele cuidado moralista de quem teme consequências, mas o cuidado de quem percebe que experiências transformadoras raramente suportam ruídos externos. A história se desenvolve como um segredo lento, compartilhado folha por folha, até que se torna impossível fingir que nada aconteceu. Não há explosões emocionais, brigas conduzidas por vaidade ou desvios dramáticos de última hora. A recusa aos atalhos dramáticos é, na verdade, um ato político: o afeto entre duas mulheres não precisa ser marcado por tragédia para existir. Ele pode, simplesmente, acontecer.
O impacto visual se articula com uma disciplina que lembra a pintura clássica, ainda que sem nostalgia. Nada soa antigo; pelo contrário, há uma fresta contemporânea aberta exatamente pela decisão de filmar digitalmente, o que retira o filme da categoria de reconstrução histórica e o coloca em um território limítrofe entre passado e presente. A textura das imagens vibra contra o academicismo: luz e cor convivem com naturalidade, como se fossem elementos respirando em cena. Isso dá aos enquadramentos uma estranheza envolvente, parecem quadros estáticos, mas têm pulso próprio.
O filme opera essa alquimia entre paixão e forma com uma segurança que quase desafia o espectador a manter distância. E falha, felizmente. Há momentos que fincam raízes, sobretudo quando o que está em jogo já ultrapassou a moldura da história e invade aquilo que pensamos sobre desejo, autonomia e o modo como lembramos quem amamos. A decisão final das personagens, mais do que separar ou unir, redimensiona a memória como lugar onde o sentimento continua, mesmo quando não se materializa no corpo ao lado.
Nada ali pede indulgência. Nada ali facilita. Por isso a experiência permanece. Algumas cenas continuam reverberando muito depois da última imagem, como se tivessem sido pintadas na retina com pigmentos teimosos. Talvez seja essa a delicadeza mais radical do filme: ele transforma o olhar do espectador em participante do pacto que uniu Marianne e Héloïse. E quando um filme nos envolve nesse tipo de acordo silencioso, não é porque quer convencer. É porque sabe exatamente o que está fazendo.
Se toda grande criação precisa de espaço para respirar, “Retrato de uma Jovem em Chamas” é o raro caso em que o silêncio, a espera e o detalhe não compõem um intervalo: são a própria revelação. E é nesse ponto, justamente quando acreditamos ter compreendido tudo, que percebemos que o filme não pediu para ser entendido, apenas visto com atenção suficiente para reconhecer aquilo que, por vezes, preferimos ignorar.
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