Candidato ao Oscar de 2026, o melhor filme argentino do ano está no Prime Video Divulgação / Amazon MGM Studios

Candidato ao Oscar de 2026, o melhor filme argentino do ano está no Prime Video

No drama argentino “Belén: Uma História de Injustiça”, a vida de uma jovem muda durante uma visita de urgência ao hospital. Uma hemorragia leva Julieta ao atendimento público; prontuários, exames e comentários apressados passam a valer mais do que a palavra da paciente. Em poucos instantes, a situação clínica se transforma em suspeita criminal. A partir daí, o filme acompanha a transformação de um episódio íntimo em caso de polícia, em que médicos, policiais e promotores se apressam em definir culpa enquanto a protagonista tenta entender de que é acusada.

A história se concentra em Julieta, interpretada por Camila Pláate, jovem do interior de Tucumán, e em Soledad, advogada feminista vivida pela própria Dolores Fonzi, que decide assumir o caso. O longa apresenta ainda Laura Paredes e Julieta Cardinali em papéis centrais na rede de apoio da acusada. “Belén: Uma História de Injustiça” adapta o livro “Somos Belén”, da jornalista e escritora Ana Elena Correa, que documenta o processo real de uma mulher presa após sofrer um aborto espontâneo e libertada graças à mobilização da chamada “maré verde”, movimento pela legalização do aborto na Argentina.

O enredo segue a lógica do drama judicial, com audiências, depoimentos e embates orais, mas mantém atenção constante às consequências da prisão para a vida de Julieta. A personagem é levada de uma cama de hospital para uma cela, sem entender o alcance das acusações. O filme acompanha quebras sucessivas de confiança: entre paciente e médicos, entre cidadã e Estado, entre família e vizinhança. Cada nova etapa do processo prolonga o isolamento da protagonista e reforça a sensação de que a investigação parta de uma sentença moral já definida.

Dolores Fonzi dirige com foco no cotidiano de quem enfrenta a máquina judicial sem recursos. A câmera costuma permanecer próxima dos rostos, registra olheiras, silêncios e pequenos gestos que revelam cansaço e medo. Em cenas de fórum, a diretora preserva o ritual do tribunal, com juízes, promotores e defensores em lugares fixos, mas chama atenção para quem ocupa o banco dos réus, sempre em posição inferior. O contraste entre a solenidade da sala e a fragilidade da jovem algemada reforça o desequilíbrio de forças em jogo.

O roteiro, assinado por Fonzi em parceria com Laura Paredes e Ana Elena Correa, alterna termos jurídicos e linguagem de militância com diálogos de registro cotidiano. Quando Soledad explica diferenças entre prova, convicção e preconceito institucional, a explicação surge em conversa tensa, ligada a decisões concretas sobre apelações e estratégias de defesa. Fora do tribunal, em reuniões, cozinhas e bares, a advogada admite dúvidas, hesita diante da exaustão e recorre ao apoio de outras mulheres para seguir adiante. O filme mostra o custo emocional da militância, sem transformar Soledad em figura infalível.

Camila Pláate constrói uma Julieta retraída, marcada por vergonha e medo, mais acostumada a se calar do que a se defender. Essa opção reforça a leitura política da obra: a protagonista não é apresentada como símbolo heroico, mas como alguém esmagada por instituições que sempre funcionaram longe de seu alcance. A intensidade da advogada de Fonzi cria contraste claro com a postura de Julieta e ajuda a expor assimetria de informação e de repertório entre as duas. Laura Paredes e Julieta Cardinali compõem personagens que transitam entre dúvidas, solidariedade e cansaço, sugerindo que a luta coletiva também se desgasta com o tempo.

Na fotografia, predominam tons frios em fóruns, delegacias e corredores administrativos, marcando esses espaços como ambientes de controle, distantes da vida diária. Já encontros de militantes e reuniões de apoio tendem a receber luz mais quente, aproximando o espectador de corpos em movimento, cartazes, lenços e vozes que se sobrepõem. A câmera de mão acompanha essas cenas com leve instabilidade, transmitindo sensação de urgência e de improviso, como se cada reunião pudesse definir o futuro de Julieta e de outras mulheres na mesma situação.

A trilha musical alterna momentos de silêncio com canções de forte reconhecimento popular, entre elas faixas de Mercedes Sosa em trechos pontuais. Quando a voz da cantora ecoa sobre planos de manifestações e rostos concentrados, o filme conecta o caso específico a uma tradição mais ampla de luta política e cultural na região. Há risco de sublinhado emocional, mas a música funciona como ponte entre gerações de mulheres que enfrentaram diferentes formas de controle sobre seus corpos. Em passagens sem canção, o som de fundo destaca portas que batem, passos em corredores, burburinhos de sala de espera, elementos que lembram a todo momento a presença do Estado na vida da protagonista.

O longa reserva menos espaço para o ponto de vista de médicos, promotores e juízes, que em muitos momentos aparecem como figuras rígidas, movidas por convicções religiosas ou morais pouco questionadas. Essa escolha enfatiza a perspectiva da defesa e das militantes, mas reduz um pouco a complexidade de quem atua dentro do sistema e poderia hesitar diante da criminalização de um quadro médico. Quando essas personagens têm chance de expor dúvidas ou conflitos, o filme ganha nuances e reforça a ideia de que o caso de Julieta se insere em uma rede de omissões e medos, não apenas em gestos individuais de crueldade.

Ao se aproximar do desfecho, “Belén: Uma História de Injustiça” prefere concentrar atenção no que o processo faz com a protagonista e com quem a acompanha. Independente do resultado jurídico, a narrativa aponta sequelas produzidas por anos de estigma, exposição e vigilância contínua. O filme registra como esse caso específico alimenta debates públicos e fortalece a movimentação de rua, que passa a reivindicar não só a liberdade de uma pessoa, mas mudanças de lei. A sensação final é de que cada audiência, cada audiência adiada e cada assembleia de rua compõem um quadro mais amplo sobre quem tem acesso à justiça e quem depende de uma multidão para ser ouvida.

Filme: Belén: Uma História de Injustiça
Diretor: Dolores Fonzi
Ano: 2025
Gênero: Crime/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★