O poeta elogiado por Leminski que a cocaína matou aos 26 anos

O poeta elogiado por Leminski que a cocaína matou aos 26 anos

Pio Vargas Abadio Rodrigues nasceu em 1964 em Goiáporá, distrito de Amorinópolis a menos de dez quilômetros de Iporá, num pedaço de Goiás em que a poeira ainda cobria as ruas e o asfalto permanecia boato distante. Ainda criança, mudou-se com a família para Iporá, onde cresceu entre quintais fundos, calçadas irregulares e salas de aula em que o quadro-negro traçava a linha frágil entre o dia letivo e o resto do mundo. Na Escola Elias de Araújo Rocha, filho de família modesta, passou dos deveres copiados com caligrafia cuidadosa à descoberta lenta de que certas palavras podiam mais do que responder perguntas e começavam a abrir fendas no cotidiano.

Poeta, editor artesanal e organizador de eventos, Pio chegou a Goiânia num tempo em que os avisos de silêncio começavam a ser desparafusados das paredes e as conversas ganhavam coragem de atravessar a rua. Antes disso, ainda em Iporá, tinha tirado do bolso o primeiro livro, “Janelas do Espontâneo”, escrito e publicado ali em 1983, volume que mais tarde diria aos amigos que não merecia ser lido, como se quisesse apagar o próprio começo para recomeçar de um ponto mais alto.

Já na capital, dividia os dias entre o expediente na Secretaria de Cultura, as reuniões da União Brasileira de Escritores, seção Goiás, e as noites longas em bares cheios de estudantes, músicos e aprendizes de escritor. Nessa rotina em que mesa de bar valia tanto quanto mesa de trabalho, Pio foi acendendo amizades, projetos e vícios. A cocaína entrou nesse circuito como mais um excesso, primeiro partilhado em risos, depois consolidado em hábito, até se tornar a linha invisível que unia o brilho do poeta ao desfecho em 1991, quando a overdose interrompeu a trajetória aos 26 anos. Havia algo de meteoro nesse percurso, um clarão rápido cortando o céu de Goiânia e deixando atrás de si um rastro de páginas curtas e histórias contadas em voz baixa.

Desse período goianiense nasceu “Anatomia do Gesto”, em 1989, já com a voz afinada por noites insones e experimentação constante. Em 1990, “Os Novelos do Acaso & o Ofício de Afagar Efêmeros” venceu o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos e sairia em edição póstuma. Poemas dispersos em jornais, revistas e zines foram recolhidos mais tarde em “Poesia Completa”, tentativa de reunir num único volume o que, em vida, ele espalhou por mesas, corredores e pequenas tiragens.

A infância em Iporá deixou marcas discretas e persistentes. Num município pequeno, de praças largas e poucos livros à mão, Pio descobriu cedo que a cidade podia caber numa casa só: a de Edival Lourenço. Ainda garoto, atravessava o portão do escritor com a familiaridade de quem visita parente e saía de lá com volumes que a escola não ensinava a pedir. Enquanto as bibliotecas públicas exibiam acervos curtos, as estantes de Edival, que se tornaria um dos nomes centrais da literatura goiana, guardavam poetas que o acompanhariam para sempre e afinavam, linha a linha, o ouvido do menino para a poesia.

Pio Vargas
Pio Vargas: Poesia Completa (R&F Editora, 238 páginas)

Quando se mudou para Goiânia, em 1986, aos 22 anos, encontrou uma capital em crescimento, com prédios subindo às pressas, trânsito engrenando e um circuito cultural em que poesia marginal, teatro de grupo e música independente dividiam o mesmo palco improvisado. Pio entrou nesse cenário com passo de quem já chega atrasado: aproximou-se de escritores goianos, frequentou oficinas, participou de cadernos literários, mas foi na noite que realmente fincou raiz. Virou figura certa em bares e botecos, cercado de violões, microfones e conversas altas, criou laços estreitos com músicos, fez parcerias com nomes como Gilberto Correa, escreveu letras em guardanapos e as viu ganhar melodia no mesmo dia. Havia nele algo de dândi de província, camisa simples e pose de estrela, um rapaz que passava de mesa em mesa sem descanso, bebendo, rindo, declamando, vivendo cada show como se fosse a única chance de que aquela cidade tivesse de ouvi-lo inteiro.

Em meados dos anos 1980, em Pires do Rio, cidade do interior de Goiás, um concurso de poesia falada reuniu público em salão de palco baixo, microfone instável e fileiras de cadeiras de plástico. Pio caminhava até a frente com o cuidado de quem sabia que uma de suas pernas era menor do que a outra, diferença que o obrigava a medir cada degrau com os olhos. Na hora de subir, escorregou e caiu diante da plateia. O susto virou riso espalhado. Ele se levantou, foi até o microfone, ajeitou o corpo e disparou um único verso: “Em Pires do Rio, não tens o direito de rires do Pio.” A frase mudou o ar da sala, e o corpo que minutos antes estava no chão retomou o lugar de voz que comandava a cena, como lembra o escritor Hélverton Baiano.

A entrada consciente na poesia moderna veio empilhada em livros emprestados. Modernistas brasileiros, concretos, marginais, beatniks e franceses dividiam espaço nas mesmas estantes improvisadas, lombadas desalinhadas à espera de mão ansiosa. Pio lia Drummond e Cabral, lia Leminski e Cacaso, lia Rimbaud e Ginsberg, lia Nauro Machado e Mário Faustino, copiava versos em cadernos baratos, respondia a lápis nas margens, sublinhava frases como quem marcasse passagem. A juventude avançava misturada a esse movimento, sem fronteira nítida entre estudo e rua, e, aos vinte e poucos anos, a poesia deixava de ser passatempo e passava a ocupar o lugar de ofício precário e inevitável.

“Janelas do Espontâneo”, seu primeiro livro, carregava o ímpeto de estreia, ainda irregular, mas já atravessado por cortes secos e imagens oblíquas. Com “Anatomia do Gesto”, o traço se adensou: os poemas ficaram mais curtos, os versos estalaram como fragmentos de uma fala comprimida, a sintaxe assumiu desvios que recusavam qualquer acomodação fácil. A noite urbana entrou de vez no quadro, feita de bares de luz amarela, calçadas gastas, corpos exaustos ao fim do expediente, figuras sem nome que atravessavam a mira do poeta e eram fixadas em meia dúzia de linhas.

Nesse percurso, a aproximação com Paulo Leminski teve peso decisivo. Os poemas de Pio chegaram ao paranaense por meio de amigos, cartas, encontros em eventos literários, e a leitura que Leminski fez daquele material ajudou a desenhar a figura do jovem goiano. Em textos e depoimentos, o autor de “Caprichos & Relaxos” falava de um “eu coletivo”, uma voz capaz de falar por muitos sem se diluir, sugerindo que ali havia menos um confessional isolado e mais uma primeira pessoa alargada, atravessada por ruas, bares e gente anônima.

O elogio funcionou como espécie de bênção num circuito em que a palavra dos pares valia tanto quanto qualquer chancela oficial. Para um poeta de vinte e poucos anos, fora dos centros considerados decisivos, ouvir de Leminski que aquele trabalho tinha peso significou acesso a outra altura de circulação simbólica. Em Goiânia, o aval foi recebido com orgulho. Em Pio, segundo amigos, produziu uma mistura rara de gratidão, vaidade e responsabilidade. Ele respondia com ironia, dizia continuar o mesmo garoto de Iporá, mas acelerou o ritmo de escrita, desenhou projetos mais ambiciosos e assumiu sem recuo a ideia de que sua vida passaria pela literatura.

A obra que deixou cabe em poucos livros, mas volta sempre ao mesmo feixe de obsessões: noite, velocidade, juventude, vício, cidade, uma mística pop feita de santos discretos, canções e cartazes amassados, além de um olhar insistente para o próprio ato de escrever. A guerra íntima aparece filtrada por ironia e melancolia, sem confissão direta, espalhada em sinais que o leitor encontra nos cantos. Poemas mencionam drogas, delírios, pequenas insurreições do corpo, uma espécie de governo interno dos sentidos. Em “Despertáculo”, o eu lírico diz que pôs vigia nos sentidos, rasgou calendários de rotina e tomou posse no governo de si, convertendo a vida privada em praça exposta ao olhar alheio.

Em outros textos, o poeta fala de um gelo que carrega um fogo que não coube, imagem que condensa contenção e excesso num mesmo objeto. Há ainda o verso em que afirma andar a moldurar delírios, planetas e galáxias inteiras em mínimas letras, tentativa assumida de enfiar mundos na forma estreita do poema. Essas escolhas apontam para uma confiança radical na linguagem, atravessada por desconfiança constante do próprio alcance, num movimento que oscila entre grandeza e autoironia, entre afirmação e recuo, enquanto testa, verso a verso, até onde uma frase pode suportar uma vida.

A juventude de Pio foi marcada por uma intensidade que transbordava o campo literário. Trabalhava em órgãos públicos ligados à cultura, coordenava projetos, ajudava a organizar coletâneas, prestava apoio a colegas estreantes. À noite, frequentava bares, recitais, festivais, rodas de música. Na apresentação de “Poesia Completa”, o escritor e crítico Ademir Luiz o definiu como um “beat no Olimpo”, expressão que tenta dar conta dessa combinação de figura mitificada e sujeito concreto, que precisava pagar contas, pegar ônibus, cumprir horários. A convivência com álcool e cocaína se aprofundou ao longo dos anos, deixando marcas em comportamentos, relações e textos.

Amigos narram que, nos últimos meses, o consumo aumentara junto com as ausências e atrasos. Pio faltava a encontros marcados, chegava depois da hora, sumia por dias, mas continuava a escrever em qualquer intervalo, a combinar projetos, a falar de edições futuras como se o tempo ainda estivesse aberto à sua frente. O jornalista Euler Belém, amigo próximo, lembra das calças que ele quase não trocava, sempre do mesmo modelo, cheias de bolsos fundos na perna; ali, entre papéis e miudezas, guardava os pequenos invólucros de cocaína que o acompanhavam por bares, repartições e viagens. Havia algo de exausto no corpo e de aceso na fala, uma urgência permanente que o fazia dizer sim a quase tudo: recitais, mesas, convites de última hora.

Em março de 1991, acompanhou o ecologista e repórter Noildo Miguel a Turvelândia, no interior goiano, onde o amigo faria uma palestra sobre meio ambiente. O dia corria dentro do previsto, com cumprimentos, ajustes de som, expectativas discretas em torno da fala marcada para o fim da tarde. Meia hora antes do início, Pio começou a passar mal e a palestra foi cancelada. Recolheu-se ao banheiro dizendo que já voltava e não voltou. Noildo o chamou, insistiu, retornou algum tempo depois e encontrou o poeta caído no chão, vítima de overdose de cocaína. Tinha 26 anos. A notícia atravessou rápido a estrada de volta até Goiânia, entre telefonemas e recados apressados, enquanto a lembrança das calças cheias de bolsos ganhava, de uma vez, o peso definitivo de um presságio que ninguém conseguiu ler a tempo.

Havia episódios que, com o tempo, ganharam contorno de emblema. Um deles envolve o escritor Edival Lourenço, que recebeu de Pio, pouco antes da viagem a Turvelândia, um pacote de originais: um livro pronto e um poema ainda aberto, pensado como trabalho em parceria. A imagem do envelope guardado, com páginas já imunes à revisão do autor, reforçou a ideia de que ali se tinha menos um ciclo concluído e mais uma obra interrompida no meio do gesto. Num ambiente propenso a mitificar artistas mortos jovens, o episódio foi lido como sinal de destino trágico, mas também como prova concreta de que, até o último momento, Pio escrevia e planejava o que ainda queria pôr no mundo.

Entre amigos e leitores que o conheceram em vida, a memória se fixa em cenas de bar, conversas interrompidas no meio de uma piada, papéis dobrados no bolso de camisas simples. Muitos lembram do riso alto, da atenção que dava aos textos alheios, da generosidade em elogiar, da rapidez em topar riscos que pareciam exagerados para qualquer outro. A literatura, nesse círculo, não aparece como refúgio separado, mas como parte contínua de um modo de existir que reunia trabalho institucional, vida afetiva, militância cultural e uma disposição franca para a autodestruição.

Em bibliotecas e casas particulares, alguns cadernos de Pio ainda circulam, cheios de rasuras, setas, palavras substituídas à pressa. Há quem guarde bilhetes com versos inéditos, dedicatórias em exemplares de primeira edição, fotografias amareladas de recitais em que ele aparece com o microfone na mão e o cigarro aceso entre os dedos. Esses vestígios mantêm acesa a sensação de uma presença que resiste em objetos pequenos, longe de qualquer monumento oficial. O poeta que morreu aos 26 anos continua a ocupar prateleiras discretas, lembranças de rodas de leitura, páginas de estudos acadêmicos e, sobretudo, os livros que deixou.

No fim de uma tarde qualquer, na biblioteca estadual que leva seu nome, um estudante abre ao acaso um exemplar de “Poesia Completa” e encontra um verso que fala de gelo, fogo, vigias internos, delírios moldurados em letras mínimas. O ar-condicionado sopra sem alarde, o movimento da rua atravessa os vidros, cadeiras rangem ao fundo, e o poema, escrito por um jovem goiano morto em 1991, ganha por alguns minutos um novo par de olhos disposto a sustentar aquele gesto interrompido.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.