“A Fantástica Fábrica de Chocolate” é o tipo de filme que revela o quanto o imaginário infantil pode ser um território de sombras disfarçado em confeitaria. O universo de Tim Burton, ao revisitar o clássico de Roald Dahl, não tem a doçura nostálgica que muitos esperam, mas um sabor agridoce, feito da mistura entre a inocência de um garoto pobre e a excentricidade de um homem que nunca amadureceu. O que parecia ser apenas uma viagem a um mundo de guloseimas torna-se uma parábola sobre o desejo, a moral e o medo de crescer. É cinema colorido à primeira vista, mas há algo de profundamente perturbador por trás do brilho das balas e das quedas cômicas das crianças mimadas.
O cineasta encontra em Willy Wonka uma espécie de alter ego: ambos se escondem atrás da fantasia, ambos tentam controlar o caos através da estética. Johnny Depp o interpreta como um ser ambíguo, dividido entre o fascínio pela pureza e o desprezo pela humanidade. Seu olhar é infantil, mas o sorriso carrega a rigidez de quem nunca perdoou o próprio passado. A infância negada é o trauma central da narrativa. Aquele flashback de um pai dentista que proíbe doces parece apenas uma anedota, mas é o cerne da fábula: o doce proibido se transforma na obsessão do adulto, e o prazer negado se vinga transformando o mundo em espetáculo. Wonka não quer apenas distribuir chocolates; quer provar que o prazer só tem graça quando ele é um privilégio.
A fábrica, nesse contexto, é mais do que um cenário extravagante. É o espelho da mente de seu criador: uma arquitetura de delírios, organizada com precisão quase clínica. Cada sala parece um teste moral, um experimento para revelar a natureza de quem ousa atravessar seus portões. As crianças que entram ali carregam os vícios modernos em forma de caricatura. O glutão, a mimada, o viciado em tecnologia, a obcecada por vitória: todos acabam engolidos por suas próprias manias. Burton não precisa puni-los de modo cruel; basta deixá-los presos nas engrenagens daquilo que mais amam. É uma versão azeda da meritocracia, onde o prêmio vai para quem tem menos, mas enxerga mais.
Charlie, interpretado com delicadeza por Freddie Highmore, é o contraponto humano desse circo de vaidades. Ele observa, não disputa. É o menino que ainda sabe esperar, talvez o último a compreender que a doçura verdadeira está fora da fábrica, no pequeno lar que resiste à miséria com dignidade. O contraste entre o casebre dos Buckets e o império açucarado de Wonka é o retrato mais claro das contradições do capitalismo tardio: de um lado, a carência material; do outro, o excesso sem sentido. Charlie vence porque não deseja dominar nada. Sua pureza não é moral, mas política. Ele não quer substituir Wonka, quer devolver ao prazer a simplicidade que o sistema industrial transformou em espetáculo.
Burton, fiel a seu estilo, transforma o grotesco em beleza. O cenário é saturado, os figurinos beiram o absurdo e a música de Danny Elfman soa como um delírio orquestrado entre o circo e o inferno. É um filme que não teme o feio, porque entende que a beleza também nasce do estranhamento. A nostalgia é desconstruída: o conto infantil vira crítica social, e o doce vira veneno contra a própria gula coletiva. Ainda assim, há ternura. Ela aparece nos silêncios entre Charlie e seus avós, na casa torta que resiste à neve, nas expressões que lembram as antigas ilustrações de Dahl. Burton compreende que a fantasia não serve para fugir da realidade, mas para devolvê-la em outra forma, mais suportável, mais poética.
Há quem diga que o filme suaviza a crueldade do livro. Talvez sim, mas o faz com inteligência. Em vez de cinismo, há uma ironia melancólica. O riso é apenas um disfarce para a dor da exclusão, e o colorido serve para esconder a solidão de um homem que construiu um império para não precisar falar com ninguém. “A Fantástica Fábrica de Chocolate” não é apenas sobre um concurso ou um prêmio; é sobre o preço de tentar transformar o prazer em propriedade. Ao final, o doce perde o gosto quando deixa de ser partilhado. É isso que Charlie ensina a Wonka: que a felicidade, como o chocolate, derrete se guardada apenas para si.
No fundo, Burton sabe que a infância não é um refúgio, mas uma ferida que aprendemos a enfeitar. Por isso, sua versão do conto de Dahl não é um retorno à inocência, e sim uma confissão sobre o fracasso de preservá-la. O brilho das cores é o verniz da perda, e a doçura é apenas o modo mais elegante de falar sobre a solidão. “A Fantástica Fábrica de Chocolate” é, enfim, um filme sobre o desejo humano de controlar o incontrolável, e sobre a ternura que sobrevive, mesmo quando o mundo insiste em transformar tudo em mercadoria.
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