Samuel L. Jackson e Sandra Bullock em thriller devastador de Joel Schumacher que chegou à Netflix Divulgação / Warner Bros.

Samuel L. Jackson e Sandra Bullock em thriller devastador de Joel Schumacher que chegou à Netflix

“Tempo de Matar“ não tenta se esconder por trás de lições de moral. Ele abre a porta com violência, joga o espectador em um abismo ético e se recusa a suavizar qualquer ferida. O tema central chega de forma direta: até onde podemos ir quando a justiça falha? A pergunta não é nova, mas o filme se compromete a explorar suas fissuras mais profundas, onde a lei perde o verniz civilizado e se revela frágil diante do que ainda chamamos de humanidade.

A cidadezinha do Mississippi poderia ser apenas pano de fundo, contudo funciona como acelerador da barbárie. A menina negra violentada por dois brancos não é apenas personagem, mas símbolo de tudo o que aquele ambiente prefere negar. Quando o pai decide matar os criminosos, ele não é um justiceiro em pose dramática; é alguém acuado por uma estrutura que não o protege. A partir desse gesto brutal, a história se expande para uma arena muito maior: o tribunal transforma o trauma de uma família em combustível para alimentar egos, disputas ideológicas e preconceitos que nunca estiveram adormecidos.

O filme sabe que não há inocentes na plateia. Cada avanço do julgamento obriga o público a ajustar seu próprio julgamento interno. A lei, supostamente cega, enxerga muito bem a cor da pele de quem ocupa o banco dos réus. “Tempo de Matar“ não tenta oferecer respostas confortáveis. Em vez disso, sustenta um incômodo constante, aquela sensação de que a moral está sempre por um fio e qualquer decisão tomada ali terá o gosto amargo da injustiça, seja qual for o veredito.

Matthew McConaughey interpreta o advogado que descobre que sua formação jurídica não basta quando o racismo decide ditar as regras. Sua busca por um equilíbrio impossível revela como os pilares da democracia são fáceis de tombar quando há ódio nas arquibancadas. Sandra Bullock surge como contraponto, uma idealista que procura sentido na própria insistência em acreditar no direito. E Samuel L. Jackson, firme e devastador, não pede piedade nem compreensão. Ele apenas existe naquele limite onde o medo vira fúria. Todos giram em torno de uma pergunta que nenhum livro de direito se arrisca a responder: quem merece ser salvo?

O que mais fascina é observar como “Tempo de Matar“ transforma o tribunal em um coliseu moderno. Os gladiadores usam ternos e argumentos inflamados. A multidão, alimentada por intolerância, pede sangue. Cada testemunha convocada revela menos sobre os fatos do crime e mais sobre o que aquela comunidade se recusa a admitir. A vingança do pai não nasce no caos, mas no cálculo doloroso de quem sabe que a impunidade estava garantida aos monstros que destruíram sua filha.

Joel Schumacher conduz a narrativa com uma precisão sem vaidades. Não existe ornamentação estética para distrair o espectador. O filme quer atingir o estômago. Quer que se sinta vergonha da sociedade que ali se expõe. A tensão cresce como um incêndio que ninguém tenta apagar, porque todos acreditam estar certos demais para recuar um passo.

Quando o júri finalmente precisa decidir, já estamos emocionalmente comprometidos. Ninguém sai ileso. O cinema aqui não se propõe apenas a entreter, embora consiga manter o ritmo de um thriller eficaz. Sua intenção mais ambiciosa é arrancar do público uma confissão íntima: será que, diante de uma tragédia semelhante, não tomaríamos a mesma decisão? O filme insiste nessa provocação, como se espionasse o que pensamos e jamais admitiríamos em voz alta.

“Tempo de Matar“ permanece relevante porque encara a justiça como um animal que a sociedade tenta domesticar, mas que sempre poderá morder quem lhe virar as costas. Não há catarse completa, não há redenção plena. Só a lembrança incômoda de que ainda somos guiados pela raiva quando o sistema falha. Talvez o cinema continue voltando a essa ferida porque ela nunca cicatrizou. E a pergunta que ecoa depois da última cena permanece aberta, pronta para devolver ao público o peso que tentou delegar ao tribunal.

Filme: Tempo de Matar
Diretor: Joel Schumacher
Ano: 1996
Gênero: Crime/Drama/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★