Um jornalista perguntou ao vocalista da banda britânica Arctic Monkeys, Alex Turner, o que ele ouvia enquanto preparava o disco “Tranquility Base Hotel & Casino” (2018). A resposta surpreendeu meio mundo, sobretudo no Brasil, porque a lista incluiu a canção “Aos barões”, do disco de estreia de Lô Borges, lançado em 1972. Em meio a nomes de jazzistas e roqueiros psicodélicos, lá estava o autor de “O trem azul” e “Um girassol da cor do seu cabelo”, discretamente habitando o imaginário sonoro de uma das maiores bandas contemporâneas de rock do planeta.
A conexão Minas-Londres fazia sentido. Ao ouvir o disco dos Arctic Monkeys, percebe-se aquela arquitetura sutil de Lô Borges, com os pianos delicados, a guitarra fuzz saturada, as harmonias que soam familiares e estranhas ao mesmo tempo. Lô sempre teve essa capacidade de ser infiltrar nos outros. Foi presença e ausência, autor e coautor, centro e periferia de uma mesma canção. É o que se vê no “Clube da Esquina” (1972), quando ele surge ao lado de Milton Nascimento, pontuando faixas decisivas e conferindo àquele disco uma textura que Milton jamais perderia.
A parceria foi tão bem amarrada que ambos assinaram o álbum. Dali nascem canções como “O trem azul”, “Tudo o que você podia ser” e “Paisagem na janela”. Aquele disco serve de lição para os dias de hoje. O Clube da Esquina já carregava o conceito de inteligência coletiva, cocriação, compartilhamento. Nada de gênios individuais. Tratava-se do “poemão” imaginada pelo escritor Antônio Carlos Brito, o Cacaso. No período mais forte da ditadura militar, o grupo se reuniu em Belo Horizonte e promoveu o encontro do rock inglês com a religiosidade mineira. A canção “Paisagem na janela”, na voz de Lô, nada mais era do que o letrista Fernando Brant observando as igrejas das cidades.
Seu primeiro trabalho solo, o chamado “disco do tênis”, é um acontecimento daquela energia criativa e coletiva. A capa mostra apenas um par de tênis gastos sobre o chão, sem título, sem pose, apenas o nome do autor. Um gesto quase anônimo. Mas o conteúdo era o contrário. Em apenas 20 dias, Lô compôs a sequência de músicas que condensavam uma estranha sabedoria harmônica. Ele mentiu à gravadora ao dizer que já tinha o repertório pronto e saiu com uma das obras-primas da música brasileira.
Legado sonoro
Após o anúncio da morte de Lô, Zeca Baleiro o definiu como “um beatle barroco”, sendo seu último parceiro de composição. A expressão do barroco capta bem a fusão entre o rigor harmônico e a melancolia mineira, aliado à energia dos ingleses no rock. Lô trazia para a MPB o eco dos Beatles e de Crosby, Stills & Nash, mas com o sotaque das montanhas de Minas, onde cada igreja parece emitir um acorde menor. Sua música sempre foi a mistura improvável de fé e distorção, melodia pop e harmonia torta, algo entre o céu e a garagem (mas sobretudo uma esquina imaginária).
Foi essa sonoridade que, discretamente, se espalhou pela música brasileira. Sem nunca ser um “medalhão”, nem tocar exaustivamente nas rádios, Lô tornou-se um referencial. Quando o Skank amadurecia sua estética, a influência de Lô Borges foi decisiva. Samuel Rosa o reconheceu como mentor, gravou parcerias e dividiu com ele um álbum ao vivo que funciona como ponte entre gerações. O lirismo discreto, os arranjos de piano e as guitarras melancólicas reaparecem na cena indie dos anos 2000, com bandas como Pública, do Rio Grande do Sul. Basta ouvir a música “Long Plays” para perceber o parentesco sonoro e as afinidades bem escolhidas.
Em “Vento no litoral”, da Legião Urbana, há também um sopro do Clube da Esquina. A balada, a harmonia, o sentimento a um só tempo que são heranças de Lô Borges. Mesmo em grupos recentes como Boogarins, de Goiânia, a sua presença se insinua. A psicodelia em português, o mergulho nos sons analógicos, a busca por uma emoção profunda. O último álbum dos goianos, “Bacuri” (2024), soa como um diálogo com aquele espírito dos anos 1970. Percebe-se a coragem de ser lírico e experimental ao mesmo tempo. Neste ano, o rapper Don L resgatou a canção “Para Lennon e McCartney” (1970) para fazer a indescritível “para Kendrick e Kayne”.
Nos últimos anos, Lô viveu um renascimento criativo. A partir de 2020, lançou discos em que voltava ao espírito coletivo do Clube da Esquina, convidando letristas e parceiros para compor. Em “Muito Além do Fim” (2021), retomou a parceria com Márcio Borges, seu irmão e cúmplice histórico, num álbum de inéditas que recoloca a dupla no presente. Em “Céu de Giz” (2025), convidou Zeca Baleiro, que assina todas as letras e divide os vocais. Foi um gesto de reconhecimento artístico que reafirma o espírito colaborativo de Lô, sempre mais interessado na partilha do que na autoria.
