O filme esquecido de Marion Cotillard e Joaquin Phoenix é uma das joias escondidas no Prime Video Anne Joyce / Wild Bunch

O filme esquecido de Marion Cotillard e Joaquin Phoenix é uma das joias escondidas no Prime Video

O conflito central opõe sobrevivência imediata e dignidade num ambiente que troca proteção por controle. “Era Uma Vez em Nova York”, estrelado por Marion Cotillard, Joaquin Phoenix e Jeremy Renner, dirigido por James Gray, acompanha a protagonista ao chegar a Ellis Island com a irmã doente. Ela quer permanecer no país, libertar a irmã do isolamento sanitário e construir renda mínima para sustentá-las. O que encontra é um sistema de triagem, vigilância e burocracia que transforma documentos em sentença. Quando um funcionário questiona seu comportamento no navio, o objetivo dela muda de “ficar legalmente” para “evitar a deportação naquele dia”.

A primeira barreira é concreta: a irmã é separada ainda no desembarque por suspeita de tuberculose. A separação altera o objetivo da protagonista, que passa a depender de dinheiro para médicos, propinas e novos vistos. Sem família por perto, ela cai no radar de Bruno, interpretado por Joaquin Phoenix, homem que oferece abrigo e uma sequência de pequenos adiantamentos. Cada adiantamento cria um novo elo de dívida. Ele apresenta um quarto, roupas e um trabalho em um teatro de variedades. O teatro parece um emprego regular, mas funciona como fachada para a exploração de mulheres. A protagonista aceita a primeira tarefa porque precisa enviar dinheiro à clínica da irmã. Essa decisão encurta o tempo disponível: quanto mais aceita, mais Bruno controla sua permanência.

A virada seguinte envolve o aparecimento de Orlando, mágico de palco — Emil, no registro civil — e primo de Bruno, vivido por Jeremy Renner. Ele tenta quebrar a lógica da dívida prometendo uma saída real: contatos, pequenas quantias, um plano para transferi-la de pensão. O interesse dele cria um novo vetor de risco, porque fere o negócio de Bruno e rompe o equilíbrio de forças. Quando Orlando a convida a assistir a um número de mágica, a cena não é mero espetáculo. Ela desloca o ponto de vista: por minutos a protagonista vislumbra outra vida. Ao retornar, o controle de Bruno aperta. Isso altera a informação central da trama: qualquer passo em direção à autonomia será cobrado com violência, delação ou chantagem.

O encadeamento de ações gera consequências mensuráveis. Quando a protagonista tenta regularizar a situação por conta própria, busca ajuda na igreja; o aconselhamento recebido reforça a escolha de se afastar de Bruno e procurar uma saída segura. Bruno, temendo perdê-la, manipula a narrativa sobre sua honra. Cada palavra dita oficialmente vira prova contra ou a favor dela. A polícia de imigração define a data da revisão do visto; a irmã aguarda na enfermaria de Ellis Island. A protagonista precisa juntar dinheiro e documentos antes desse prazo. A tensão cresce sem atalhos: ela tenta guardar parte do que ganha, mas Bruno administra o caixa e cobra taxas. O objetivo original — reunir as duas irmãs em liberdade — começa a depender de um acordo que a amarra ainda mais ao explorador.

A atuação contida de Marion Cotillard restringe o que o público sabe ao que a personagem percebe. Nos momentos em que ela cala, a montagem nos coloca ao alcance do que a personagem pode ouvir, o que limita o conhecimento do espectador ao ambiente dela. Quando Bruno mente para um policial na frente dela, o recorte de imagem mantém a protagonista entre os dois homens, visualizando o cerco. Isso altera a percepção de tempo: cada passo vira uma contagem regressiva para um possível flagrante.

Há uma segunda virada quando Orlando propõe uma fuga mais concreta, prometendo participação em seu número e uma viagem curta para longe da vigilância de Bruno. A proposta tem efeito imediato: Bruno reage cortando as saídas físicas e financeiras dela. O teatro, antes um espaço de circulação, vira um labirinto de corredores e portas que fecham. O caminho até a irmã exige autorização, e cada autorização vira moeda. O filme demonstra esse encolhimento de opções com repetição de corredores, filas e portas que se trancam. O que era cidade aberta encolhe para uma sequência de salas sob controle masculino.

O ponto máximo chega após uma briga entre Bruno e Orlando que não nasce do ciúme puro, mas de um conflito direto de negócios e posse. A violência desse confronto cria um evento policial. A partir daí, a protagonista enfrenta três escolhas com consequências imediatas: colaborar com a polícia e arriscar ser deportada por sua ocupação, mentir para salvar um dos homens e selar nova dependência, ou negociar uma terceira via que envolva dinheiro e silêncio em troca da libertação da irmã. O risco é transparente: qualquer palavra oficial pode prendê-la ao crime, qualquer omissão pode manter a irmã afastada do tratamento.

A fotografia interfere no entendimento da história porque diferencia espaços de decisão e de subserviência. Nas cenas da pensão e dos bastidores, a luz baixa comprime rostos e esconde saídas, sinalizando a assimetria de poder. Nos raros momentos em que a protagonista vê a cidade à luz do dia, a profundidade de campo abre alternativas visuais que nunca se concretizam porque faltam documentos e proteção. Essas escolhas visuais não servem de enfeite; informam o quanto a cidade oferece em aparência e nega na prática.

O relacionamento entre a protagonista e Bruno evolui por transações. Quando ele concede uma visita extra à irmã, não é gesto gratuito; pretende comprar lealdade para o caso de investigação. Cada “favor” reconfigura o objetivo dela: pagar a visita, pagar o quarto, pagar a roupa, até que o fundo de emergência destinado à irmã se torna impossível. Fica claro que o obstáculo não é só o dinheiro, é a cadeia de mediações masculinas entre ela e as instituições. O padre que a escuta, os policiais que a interrogam, o contratante que define seu turno, todos detêm carimbos, chaves ou testemunhos que ela precisa. Ao aceitar os termos de Bruno para não perder a irmã, a protagonista reforça o próprio cárcere, e o filme expõe essa ironia por meio de ações e consequências.

A presença de Orlando introduz um contraexemplo de mobilidade que lembra figuras românticas de “Amantes”, mas, diferente daquele título, aqui a esperança sempre passa por um preço legal e financeiro. O mágico promete desaparecer com ela, porém nenhum truque desativa registro civil, contas a pagar ou ficha médica. Essa comparação evidencia uma escolha formal: James Gray volta a um triângulo afetivo para testar os limites de uma saída honrosa, mas condiciona a história a contratos e autoridades, não a impulsos.

Quando a polícia avança depois do confronto entre os homens, a protagonista se vê na beira de uma confissão. Ela calcula em silêncio: se disser a verdade sobre a exploração, pode ganhar proteção institucional e perder o direito de permanecer; se poupar Bruno, garante o fluxo de dinheiro, mas adia a liberdade da irmã; se tentar uma barganha, precisa apresentar algo que a lei considere valioso. O suspense nasce desse cálculo. O que está em jogo não é uma vitória moral abstrata, e sim o prazo de internação da irmã e a chance de manter as duas no mesmo país.

As consequências seguintes decorrem desse triângulo entre necessidade, lei e afeto. Importa registrar que a protagonista não perde o foco: cada decisão é medida pelo efeito imediato sobre a situação médica da irmã e pelo risco de deportação. As ações que se sucedem alteram a geografia da história, redistribuem dívidas e mostram quanto custa, em documentos e em corpo, transformar um desembarque em moradia. A próxima visita à enfermaria depende de um carimbo e de uma porta que ainda precisa se abrir.

Filme: Era Uma Vez em Nova York”
Diretor: James Gray
Ano: 2013
Gênero: Drama/Romance/Tragédia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★