Obra de Scorsese que inspirou “Cidade de Deus” acaba de chegar à Netflix, e é considerado o filme mais perfeito da história Divulgação / Warner Bros.

Obra de Scorsese que inspirou “Cidade de Deus” acaba de chegar à Netflix, e é considerado o filme mais perfeito da história

Desde a primeira batida da trilha sonora até o último olhar de Henry Hill, “Os Bons Companheiros” conduz o espectador por uma experiência que não filtra a brutalidade, a vaidade e o fascínio de uma vida movida pelo crime. Scorsese não idealiza o submundo, ele o disseca com a frieza de quem compreende que o verdadeiro poder não está nas salas luxuosas dos chefes mafiosos, mas nas calçadas onde sangue e dinheiro se confundem. A história é genial justamente por causa dessa recusa em criar mitos: cada gesto é ao mesmo tempo banal e violento, revelando que o crime, quando desprovido de glamour, é apenas mais uma forma de rotina, e de autodestruição.

Inspirado na trajetória real de Henry Hill, o filme mergulha na ascensão e queda de um homem que nunca quis ser rei, apenas aceito. Metade irlandês, metade italiano, ele cresce olhando para o crime organizado como uma promessa de pertencimento. Mas o que começa como deslumbramento infantil logo se converte em um vício pela adrenalina de viver fora da lei. Scorsese transforma esse percurso em uma espécie de espelho distorcido do sonho americano: um manual de ascensão social em que o mérito é substituído pelo medo, a fidelidade pelo oportunismo e o sucesso pela paranoia constante. A câmera, inquieta e impiedosa, parece capturar a própria pulsação de um mundo que gira rápido demais para permitir arrependimentos.

Diferente da abordagem solene de “O Poderoso Chefão”, em que a máfia assume ares de nobreza trágica, “Os Bons Companheiros” opera no terreno da vulgaridade cotidiana. Aqui, o crime não é uma instituição majestosa, mas um negócio familiar de esquina, regido por homens que resolvem desentendimentos com balas e apertos de mão falsos. A genialidade de Scorsese está em deslocar o foco da cúpula para o chão, mostrando que o verdadeiro coração do crime organizado bate nas conversas banais, nas festas de batizado, nas panelas de molho fervendo enquanto alguém desaparece misteriosamente. É esse contraste entre o ordinário e o monstruoso que dá ao filme sua força quase hipnótica: a violência não é exceção, é o pano de fundo da convivência.

O trio central, Henry, Jimmy e Tommy, funciona como um retrato brutal da masculinidade deformada pelo poder. Jimmy (Robert De Niro) encarna o cálculo frio de quem mede lealdades em cifras; Tommy (Joe Pesci), a fúria imprevisível de um homem que confunde respeito com medo; e Henry (Ray Liotta), o observador que acredita controlar o jogo sem perceber que já é mais uma peça descartável. Suas interações oscilam entre camaradagem e desconfiança, entre risadas histéricas e explosões homicidas. Nada neles é estável, porque o poder, nesse universo, é sempre temporário. Cada vitória contém a semente de sua própria ruína.

O filme também desmonta a fachada de glamour que o cinema tantas vezes associou à vida criminosa. As festas, os ternos alinhados e os carros luxuosos são apenas vernizes sobre uma existência regida por impulsos primitivos. Scorsese filma esses excessos como sintomas de uma doença moral coletiva, uma espécie de embriaguez social em que todos fingem estar no controle enquanto afundam. A sequência em que Karen Hill, desesperada, tenta apagar as provas do tráfico, é um dos momentos mais reveladores: o colapso doméstico se confunde com a desintegração ética. A casa, antes símbolo de estabilidade, torna-se o epicentro do caos.

A direção de Scorsese é de uma precisão visceral. Cada movimento de câmera, cada corte abrupto e cada música escolhida compõem uma orquestra de tensão que nunca perde o ritmo. A montagem fragmentada e o uso da narração em primeira pessoa criam uma sensação de intimidade e vertigem, como se o espectador fosse cúmplice involuntário daquela vida. É um cinema que não busca distanciamento moral, mas imersão, a mesma imersão que atrai Henry Hill para o crime. Assim, o filme se torna menos uma história sobre a máfia e mais um estudo sobre o magnetismo do poder, a necessidade de pertencimento e a ilusão de controle.

O que torna “Os Bons Companheiros” ainda mais perturbador é o modo como expõe a fragilidade daquilo que seus personagens acreditam ser invencível. A lealdade é um disfarce para o medo; o respeito, uma forma de chantagem; a amizade, um contrato sempre prestes a ser rompido. Quando a paranoia substitui a confiança, a estrutura toda implode, e o que resta são homens encurralados por seus próprios instintos. Scorsese não oferece redenção, apenas a constatação de que, no fim, o castigo é viver o suficiente para ver o próprio mito se dissolver.

Três décadas depois, o impacto do filme permanece inalterado. Nenhum outro retrato da máfia alcançou tamanha combinação de energia, realismo e ironia. “Os Bons Companheiros” não busca rivalizar com “O Poderoso Chefão”, ele o subverte. Enquanto Coppola filmava uma tragédia sobre poder e família, Scorsese construiu uma crônica sobre mediocridade e delírio. Seu universo é habitado por homens que acreditam ser deuses e terminam presos àquilo que mais desprezavam: a vida comum. E talvez seja exatamente essa ironia, a de que o paraíso prometido pelo crime leva, inevitavelmente, à banalidade que faz do filme um clássico inextinguível.

Filme: Os Bons Companheiros
Diretor: Martins Scorsese
Ano: 1990
Gênero: Biografia/Crime/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★