Em “Garota Exemplar”, David Fincher transforma o que poderia ser apenas um suspense sobre uma mulher desaparecida em uma autópsia moral de um relacionamento em decomposição. O desaparecimento de Amy Dunne funciona como o estopim de uma encenação coletiva: marido, mídia e público se tornam personagens de uma performance que só ganha sentido quando alguém assume o papel de vilão. A partir daí, a narrativa abandona a investigação policial tradicional e mergulha em algo mais incômodo: a espetacularização da intimidade e a necessidade do público de transformar qualquer tragédia em entretenimento.
As críticas de “furos de roteiro” soam quase irrelevantes quando se entende que o filme nunca pretendeu operar dentro da lógica da verossimilhança. Fincher constrói uma fábula cínica sobre o poder da manipulação narrativa, tanto da mídia quanto dos indivíduos. As câmeras de segurança, o diário editado, as entrevistas calculadas: tudo é parte de um mesmo jogo, em que a aparência se sobrepõe ao fato. Amy Dunne compreende melhor do que qualquer um o papel da narrativa na era da exposição. Ela não quer apenas provar um ponto, quer dominar o enredo, controlar o olhar coletivo e transformar-se no mito da vítima perfeita.
É nesse ponto que o filme revela sua natureza mais perturbadora. Não estamos diante de um mistério a ser resolvido, mas de um espelho distorcido da sociedade do espetáculo. A polícia, os jornalistas e até o público reagem a Amy com o mesmo automatismo das redes sociais: acreditam, indignam-se, esquecem. Fincher expõe o prazer mórbido do julgamento público, o gozo de encontrar culpados antes mesmo de compreender os fatos. Amy é o reflexo desse impulso coletivo, a mente capaz de manipular o desejo de acreditar. Ela se torna a “esposa americana exemplar”, mártir, símbolo e fantasia moral, tudo ao mesmo tempo. E, no fundo, é exatamente isso que todos querem que ela seja.
A ironia é que Nick Dunne, interpretado com uma apatia calculada por Ben Affleck, funciona como o duplo imperfeito dessa encenação. Ele é o homem comum que não entende o jogo e acaba sendo engolido por ele. Quando tenta recuperar sua imagem, o faz recorrendo às mesmas ferramentas que o destruíram: a câmera, o discurso ensaiado, o apelo emocional. O casal transforma o casamento em uma guerra midiática, e a casa em palco de uma disputa entre verdade e performance. Cada gesto é uma encenação para as câmeras, para o público, para si mesmos. No universo de “Garota Exemplar”, amar é atuar e sobreviver é manipular.
Fincher dirige esse circo de aparências com precisão glacial. A montagem alterna o presente e o passado como se cada lembrança fosse uma mentira cuidadosamente construída, desmontando qualquer noção de linearidade emocional. Rosamund Pike entrega uma das performances mais hipnóticas do cinema recente, não apenas por sua frieza calculada, mas pela inteligência perversa com que transforma cada silêncio em acusação. Sua Amy é a vilã e a vítima, a narradora e o mito, uma criação tão perfeita que se torna impossível distinguir onde termina o personagem e começa o artifício.
Mais do que um thriller, “Garota Exemplar” é um estudo sobre narrativa e poder. Fincher mostra que o público não busca a verdade, mas coerência emocional, uma história que reforce suas crenças. É por isso que os “furos” importam menos do que o desconforto que eles geram. Eles funcionam como rachaduras propositais, lembrando-nos de que também estamos sendo manipulados, de que a verdade é um produto como qualquer outro. O filme não é sobre quem está certo, mas sobre quem controla a versão dos fatos.
O que permanece após o fim não é o alívio da resolução, mas o espanto diante da própria cumplicidade. Assistimos ao espetáculo da destruição de um casamento e, de alguma forma, nos divertimos com isso. “Garota Exemplar” não quer apenas entreter; quer revelar a delícia e o perigo de acreditar em narrativas prontas. Em tempos de indignação instantânea e julgamentos virais, Amy Dunne talvez seja menos uma psicopata e mais um espelho, o retrato de uma era em que a mentira perfeita é aquela que todos querem compartilhar.
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