O patriarcado continua a ditar as regras, moldar as identidades e silenciar os afetos. Nesse contexto, a família constitui um campo minado, onde qualquer ofensa é vista como uma mácula que só o sangue pode expurgar. Planos de vingança surgem como a solução mágica e bestial para restaurar a dignidade perdida, e homens tornam-se prisioneiros de um vício que se disfarça de virtude. Esposas e filhos são usados como peças num jogo sujo que transforma honra em maldição, alimentando ciclos intermináveis de horror. Tiranos cujos nomes não aparecem nas páginas dos jornais mantêm seu poder ajudados pelo medo e pela vergonha, uma história que Tamara Trottner conhece como poucos. “Ninguém Nos Viu Partir” (2020), o romance autobiográfico da mexicana, a escritora descreve com tocante bravura o trauma de ter sido raptada pelo próprio pai aos cinco anos, na iminência de uma separação rumorosa. Samuel Kishi e os irmãos Lucía e Nicolás Puenzo, filhos de Luis Puenzo, diretor de “A História Oficial” (1985), Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1986, vertem o relato de Trottner em cinco episódios ao longo dos quais esmiúçam as razões ocultas do crime, evitando caricaturas e conduzindo a emoção do público.
Valeria e Leo Saltzman são um casal feliz na Cidade do México dos anos 1960 — ou assim eles são vistos pela sociedade austera que os rodeia. Minuciosa, a adaptação de María Camila Arias vai explanando a personalidade dos dois, e aos poucos fica óbvio que não poderiam mesmo continuar juntos. O romance extraconjugal de Valeria era a motivação de que Leo, judeu, precisava para levar a termo a ideia desatinada que o perseguia e fugir com os filhos, Tamara e Isaac, para Israel. Esse é um ponto sensível com que Arias e os diretores tomam cuidado, ressaltando o preconceito de que ambos passam a ser vítima, mas também sugerindo que numa outra conjuntura não seria muito diferente. Kishi e os Puenzo apostam em planos-sequência longos, com tempo de sobra para vislumbrar possíveis reações da mãe e a incompreensão assombrada das crianças, submissas ao pai, mas cientes de que alguma coisa de bastante incomum estava ocorrendo. O plano de resgate de Valeria, que não se conforma em ficar sem Tamara e Isaac, consome boa parte da narrativa, chegando a ser excessiva a certa altura, mas Tessa Ía e Emiliano Zurita são hábeis ao unir técnica e um ligeiro pendor ao melodrama, especialmente depois que o FBI e a Interpol entram no caso e a série assume sua porção thriller. A riqueza das entrelinhas faz de “Ninguém Nos Viu Partir” uma crítica certeira, racional e emocionada, dos casamentos e seus pecados mais íntimos.
Série: Ninguém Nos Viu Partir
Direção: Samuel Kishi e Lucía e Nicolás Puenzo
Ano: 2025
Gênero: Drama
Nota: 8/10