Uma mãe pioneira vê a filha raptada por um bando que atravessa o interior e decide partir em perseguição, mesmo diante de terreno hostil, invernos duros e incertezas sobre o paradeiro dos sequestradores. A decisão de seguir viagem implica aceitar a companhia do pai ausente, cuja presença divide lembranças dolorosas e conhecimentos úteis para avançar. O longa “Desaparecidas”, dirigido por Ron Howard e protagonizado por Cate Blanchett e Tommy Lee Jones, adapta o livro “The Last Ride”, de Thomas Eidson, e transforma um enredo de resgate em estudo sobre responsabilidade e reconciliação em meio a ameaças constantes.
Howard filma o Oeste com senso de realidade: espaços abertos que não convidam ao repouso, trilhas que cobram preço de cada quilômetro e conflitos que nascem de necessidades materiais. A violência aparece de modo direto, sem truques de palco, e sua função dramática é clara, restringindo-se ao que os personagens arriscam para seguir adiante. A fotografia evita idealização e destaca poeira, frio e cansaço, enquanto a encenação privilegia movimentos legíveis e objetivos. Nessas passagens, a sensação de perigo não depende de ornamentos, mas do cálculo entre tempo, terreno e o que se pode carregar.
A protagonista encontra em Cate Blanchett uma intérprete que compreende a lógica prática daquela vida. O rosto marcado pelas intempéries e o olhar atento ao detalhe revelam uma mulher que mede riscos, observa rastros, confere mantimentos e negocia com vizinhos quando necessário. Tommy Lee Jones compõe um homem que viveu entre os Apaches e agora busca uma forma de reparar a ausência com ações úteis, não com confissões sentimentais. O encontro entre essas duas figuras produz atrito silencioso e, aos poucos, um entendimento possível, baseado em tarefas partilhadas, escolhas pragmáticas e uma ética voltada à proteção.
A presença indígena não é figurada como bloco monolítico. Há interlocutores com regras próprias, disposições variadas e memórias conflitantes, e a narrativa reconhece códigos que não coincidem com a lei dos colonos. O antagonista, associado a práticas de feitiçaria, envolve risco de caricatura, mas Howard tenta deslocar a oposição simples entre suposta civilização e suposta barbárie. O que define alianças e rupturas não é uma divisão binária, e sim o tipo de pacto que cada grupo julga aceitável para sobreviver. Resta a dúvida sobre até que ponto a trama escapa de estereótipos que o gênero carregou por décadas.
A trilha de James Horner funciona como contrapeso emocional, sem sobrepor-se à cena. Os temas prolongam a respiração das sequências de marcha e adicionam melancolia às pausas noturnas. O desenho de som destaca couro, ferraduras, vento e madeira, compondo a materialidade daquela rotina. A direção de arte mantém a paisagem como espaço de trabalho e conflito, não como cartão-postal. Quando a perseguição acelera, a decupagem conserva lógica espacial, permitindo distinguir quem atira, de onde e com que consequência. O resultado sustenta a tensão com escolhas claras, e o público consegue medir distâncias e reconhecer vantagens temporárias.
As relações familiares concentram o núcleo dramático. A filha sequestrada representa um futuro possível, tanto para a mãe quanto para o avô que retorna. Ao buscar a jovem, a mãe precisa lidar com a reaparição de um passado que não fecha cicatrizes de imediato. A narrativa trabalha com gestos pequenos: um cantil passado adiante, um abrigo improvisado, a divisão de tarefas em silêncio. Não há convite a reconciliações instantâneas, e sim tentativa de tornar convivência viável em meio ao esforço de salvar alguém. Essa escolha confere densidade ao percurso, pois cada avanço cobra um preço emocional.
A comparação mais direta recai sobre “Rastros de Ódio”, referência inevitável quando o faroeste lida com busca e retorno. A diferença está no horizonte moral proposto. Enquanto o clássico coloca a obsessão como motor, “Desaparecidas” se fixa na combinação entre necessidade e cuidado, dando centralidade a uma mulher que organiza a vida a partir do trabalho e da proteção dos seus. Esse deslocamento altera prioridades, muda o campo das negociações e convida o público a olhar para decisões que nascem da prática cotidiana, não de abstratas missões de honra.
Há opções que suscitam debate. O vilão com tintas místicas, embora funcione como motor para a corrida contra o tempo, reduz parte das dimensões históricas do conflito a um traço de exotismo. O trecho derradeiro alonga a duração de certas ações e repete informações já estabelecidas, como se a produção temesse perder o público no fechamento de contas. Ainda assim, a narrativa preserva coerência com a proposta de acompanhar pessoas comuns confrontadas por escolhas urgentes, e esse recorte favorece uma leitura mais terrena do faroeste.
Howard, muitas vezes associado a projetos urbanos ou tecnológicos de grande orçamento, aqui demonstra atenção às rotinas exigentes da vida fora das cidades. A câmera insiste em mãos, botas, animais, equipamentos de viagem, instrumentos de cura e feridas mal tratadas. Esses detalhes programam a narrativa para o concreto e diminuem a chance de romantização. Quando há tiro, queda ou corrida, o impacto vem do acúmulo de esforço anterior, não da pirotecnia. Esse caminho alinha forma e conteúdo e confere unidade ao filme, ancorando a experiência no cansaço dos personagens.
O elenco de apoio também contribui para a credibilidade do percurso, com participações que pontuam a travessia sem tomar a frente da história. A filha mais velha, vivida por Evan Rachel Wood, aparece como presença determinante para a percepção do que está em jogo, mas sem que o roteiro precise expor destinos futuros. O desenho das relações fica claro pela repetição de gestos e olhares, e cada encontro na estrada redefine prioridades, diminui reservas ou cria novos obstáculos. Em cada parada, a pergunta permanece a mesma: quantos riscos ainda valem a pena para que a jovem volte para casa.
“Desaparecidas” foi lançado em 2003 e se posiciona na tradição do faroeste tardio que enfrenta a herança do gênero sem truques de nostalgia. Ao preferir a dureza da paisagem e a lógica das necessidades, o filme encontra uma via que não depende de grandiloquência para manter o interesse. No desfecho da jornada, o que fica não é uma moral triunfal, e sim a constatação de que proteger alguém exige abandonar fantasias de pureza e aceitar perdas que não se apagam com a primeira noite de descanso. Essa conclusão persiste como questão em aberto para quem percorre o mesmo terreno.
★★★★★★★★★★