Saudosismo é uma desgraça. Pelo simples fato de não resolver os dilemas existenciais. Pelo contrário, piora-os. Era domingo. Tinha saído para comprar hortifrútis e acabei encostando o carro do lado de um campo de terra onde acontecia a final de um torneio do futebol amador. Uma multidão animada se espremia sob a poeira para acompanhar o embate decisivo. Cerveja gelada descendo pelas serpentinas. Fumaça de churrasquinho subindo pelo ar. Vira-latas invadindo o campo. Homens apostando dinheiro. Mulheres retocando o batom. Crianças aporrinhando. A animação da turba contagiava-me. Enquanto acompanhava a peleja, a melancolia jorrava dentro de mim como um cano de água furado. Lembrei-me do meu velho que me levou pela primeira vez a um estádio de futebol, o Serra Dourada. Eu tinha 10 anos. O jogo sucedeu à noite. Caminhamos pelo fosso de concreto até a arquibancada, onde nos deparamos com uma das cenas mais emblemáticas da minha vida: holofotes potentes iluminavam o estádio lotado, o gramado enorme, verde, verdinho, como jamais tinha visto ou, sequer, imaginado. Devia ser aquela a mesma sensação de se entrar no céu. Ou não. Não vinha ao caso. Desde então, tornei-me aquele tipo de sujeito que frequenta estádios de futebol. Na alegria e na tristeza. Mais na tristeza do que na alegria. Afinal, o time do coração não se cansa de me decepcionar e de testar as minhas coronárias. Testemunhei tempos gloriosos do futebol brasileiro, recheado de craques de altíssimo nível técnico, ovacionados por arquibancadas abarrotadas de gente, bandeiras desfraldadas, foguetório comendo solto e ambulantes carismáticos serpenteando entre a torcida para vender de um tudo que existisse de mais gostoso. O povão humilde, feliz da vida, espremia-se na geral, nas populares, que era a zona dos ingressos mais baratos. Naquele tempo, ainda não chamavam estádio de futebol de arena. Jogador não tatuava o corpo de cabo-a-rabo, não fazia as sobrancelhas e não conversava dentro do campo colocando a mão na frente da boca para evitar a leitura labial. Quanta frescura. Mas, voltemos à várzea. O jogo seguia eletrizante. Bola pro mato que o jogo era de campeonato. O clima esquentou literalmente. O carro de som, movido a gás de cozinha, pegou fogo. Um casal brigou tomado pelo ciúme. Alguém teve o telefone celular surrupiado. Uma grávida rompeu a bolsa. Populares se ofereceram prontamente para levá-la até a maternidade mais próxima. Nessas horas o que não falta é gente boa. Nascia uma jogada promissora. Nascia pela ponta, que alguns rebatizaram como beirada. É sempre pelas pontas — e não pelas beiradas — que se iniciam as melhores jogadas. Por fim, o momento máximo do futebol, o gol, um gol de placa. A torcida festejou. Os jogadores do time adversário cercaram o árbitro para reclamar de irregularidade no lance. Não existia VAR na várzea, graças a Deus, que talvez nem exista. Tudo era alegria naquele periférico campo de terrão, ainda livre da sanha insaciável das incorporadoras imobiliárias. Entrei no carro e rumei para a mercearia. Enquanto dirigia pelas ruas desertas naquela manhã dominical seca e calorenta, eu refletia: o futebol contemporâneo perdera a graça e o encanto? Eu sentia falta das jogadas de efeito, dos dribles desconcertantes, dos lances geniais e, acima de tudo, da massa se espremendo nas dependências. Ricos. Pobres. Classe média. Todos juntos e misturados. A gestão do futebol profissional tinha se dado de forma gradual e discriminatória, uma vez que encarecia o acesso das pessoas, elitizando o esporte, segregando os torcedores de baixa renda, os caras com camisetas do time puídas e desbotadas. Pode parecer mi-mi-mi, choro de perdedor, mas, acredito que bom mesmo era o tempo em que o povão frequentava os estádios, ainda que nas áreas mais baratas, sem o conforto merecido, fazendo com que o futebol se tornasse a modalidade esportiva mais popular do planeta. Só que não.

Pela volta do povão aos estádios de futebol

Eberth Vêncio
Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 60 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.
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