De como me tornei um homem sexy

De como me tornei um homem sexy

Podem me chamar de sexy. Sexagenário. A piada é velha, mas não tão velha quanto eu. Há poucos dias, completei 60. Atendimento prioritário. Desconto na farmácia. Meia entrada no cinema. Cartão de estacionamento. Empréstimo consignado. Dedo no rabo. A praga de golpistas tentando me arrancar dinheiro. Não sabia se ria ou se chorava. Na verdade, me sentia caído de um caminhão de mudanças, sem saber ao certo para onde ir, sem saber ao certo no que pensar. Acabei afagado por amigos e por parentes que se achegaram a mim numa tarde suarenta regada a chope, feijoada, caipirinha, música antiquada e muita conversa fiada. Lembro-me do baque emocional que eu sofri quando completei 40. Lá se foram mais vinte anos. Vivi, portanto, uma espécie de déjà-vu. A sensação de completar 60 parecia lasanha congelada, não me caía bem. Poderia estar roubando. Poderia estar matando. Mas, aqui estou, a lhes descrever a sensação um tanto indigesta de adentrar na melhor idade. Melhor idade só se for para os geriatras. Preferia mil vezes Volver a los 17, mas não sei cantar essa canção de Violeta Parra. Só por experimento, tentei calçar um par de meias, em pé, no quarto, sem me apoiar na penteadeira — alguém aí, por acaso, sabe o que é uma penteadeira? Quase me arrebento. Tá certo. Estou exagerando. Resta-me ainda algum querosene para queimar. A minha batata está assando em forno brando. Acontece que passei a integrar o seleto grupo de indivíduos que devem tomar cuidado com quedas, friagem nas costas, diarreia e, mais importante de tudo, a companhia de pessoas inconvenientes. Chorando as pitangas com os meus botões, concluí que uma das raras vantagens de me tornar um idoso, de acordo com a nomenclatura vigente, era agir de forma mais seletiva no convívio social. Não tinha mais tempo a perder com dissimulados e com malas-sem-alça. Como escreveu Charles Bukowski, um escritor de quem muito gosto: “Algumas pessoas vão lhe encher o saco. Não vão entender o que você está tentando fazer. Vão bater na sua porta e se sentar numa cadeira e consumir seu tempo sem lhe acrescentar nada. Quando muitas pessoas nulas aparecem e seguem aparecendo, você tem que ser cruel com elas, pois elas estão sendo cruéis com você. Você tem que botá-las pra correr. Algumas pessoas que são interessantes, por si só, trazem energia e luz próprias, mas, a maioria não tem serventia alguma, nem para você, nem para eles mesmos. Tolerar os embotados não é sinal de humanidade, apenas aumenta o seu próprio embotamento e eles sempre deixam um pouco desse peso com você quando vão embora”. Parece que isso foi escrito para mim. Cheguei a correr meias maratonas. Hoje, só consigo fazer o mesmo dirigindo o meu carango — sabem o significado da palavra carango? — com os meus óculos fundo-de-garrafa, na busca de uma maldita vaga de estacionamento num supermercado, identificada com a decrépita silhueta de um velhote corcunda, alquebrado, se apoiando numa bengala. Queria dar uma bengalada no indivíduo que decidiu que a velhice é a melhor fase da vida de um ser humano. Será que já me tornei ranzinza? Será o mau humor mais um sintoma de senilidade? No creo. A sensação, contudo, é esquisita: trago projetos juvenis aprisionados num corpo com sérias limitações físicas. Se isso não é uma sacanagem da natureza, não sei como definir. Os elefantes velhos, sensatos como um piano que salta do oitavo andar, buscam o autoexílio nas savanas e nas florestas. Parece óbvio que não sou um elefante. Nenhuma savana ou floresta por perto. Aliás, devastaram o cerrado brasileiro. Só me resta viver. Rodar dadinhos. Apostar em cavalos. Imitar Bukowski. Aporrinhar mulheres bonitas nas redes sociais. Dar trabalho para a patroa. Escrever um romance. Ah… Taí uma iniciativa útil que não vai depender dos meus músculos. Não se apoquentem. Não estou deprimido. Há um bocado de sarcasmo nessas linhas. Coisas de escritor, sabem como é. A licença poética me faculta esculhambar com a finitude. Não passa de brincadeira. É quase tudo uma enorme brincadeira. Sinto-me bem e até hilário. Só tenho mesmo que a agradecer aos amigos, aos parentes e, em especial, ao Doutor Jivago, o meu urologista, um sujeito pau-para-toda-obra — no melhor dos sentidos, pelo amor de Deus — e o seu aplicado dedinho fura-bolo de proporções ridículas. Ufa! Sinto-me bem melhor por ter desabafado. Agora, vou abrir uma garrafa de Château Duvalier, botar Bee Gees para tocar na vitrola e relaxar deitado no meu puff dégradé. Château Duvalier? Bee Gees? Vitrola? Puff? O que significam? Perguntem ao ChatGPT, meus jovens. Vocês não são dessa época.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 60 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.