O conflito central contrapõe sobrevivência profissional e perda de lugar. Uma dupla tenta manter-se visível enquanto a indústria muda regras e gostos a cada temporada. Em “Era uma Vez em… Hollywood”, estrelado por Leonardo DiCaprio e Brad Pitt, com Margot Robbie em papel decisivo, dirigido por Quentin Tarantino, a história acompanha as tentativas de conservar prestígio quando a idade, a moda e a política do show business apertam o cerco.
Rick Dalton, interpretado por Leonardo DiCaprio, define cedo seu objetivo: recuperar o status de protagonista e provar que ainda é vendável. O obstáculo imediato é estrutural. Os seriados de faroeste perdem espaço e a televisão o empurra para participações como vilão da semana, sinal de decadência na lógica do período. A conversa com o agente vivido por Al Pacino muda a balança. Surge a oferta de filmar na Itália, caminho real para atores em queda. A proposta desloca o foco, pois apresenta um atalho com custos. Aceitar implicaria abandonar o circuito que validou sua fama. Recusar preserva o orgulho, mas reduz oportunidades. A partir daí, cada trabalho na TV se torna prova de valor, comprimindo tempo dramático e margem de erro.
Cliff Booth, vivido por Brad Pitt, tem objetivo mais elementar. Precisa seguir empregado como dublê e motorista do amigo, já que o mercado o evita. O rumor de que ele teria matado a esposa contamina sua reputação, o que altera a forma como diretores e coordenadores de ação o tratam. Ao chegar a um set, Cliff precisa vencer a resistência do ambiente antes de sequer executar a cena, o que reconfigura sua função narrativa. Ele não é só executor de risco, é o para-raios das tensões que cercam Rick, e essa posição o leva a encontros que empurram a trama para zonas perigosas da cidade.
Margot Robbie interpreta Sharon Tate, que move outro eixo. Sua presença articula expectativa e memória. Em suas idas ao cinema e em deslocamentos por Los Angeles, o filme constrói um contraponto ao declínio de Rick. Sharon busca reconhecimento direto. Quer ver se a plateia reage, se o nome dela ganha peso. Essas sequências alteram ponto de vista e tempo. Ao acompanhar a personagem em passos cotidianos, a narrativa estende a duração e insere o espectador numa calmaria que contrasta com a urgência de Rick e a precariedade de Cliff. O efeito é estratégico. A cidade deixa de ser cenário e vira relógio emocional, ajustado por canções de rádio e anúncios que datam cada deslocamento.
No set de um novo seriado, Rick encara um obstáculo técnico que vira crise íntima. Ele precisa compor um antagonista com sotaque e trejeitos específicos. Tarantino posiciona o desafio como prova concreta. Se falha, perde terreno. Se acerta, reabre portas. O diálogo com a jovem atriz que lê ao lado dele ganha função clara ao gerar ação posterior. Quando ela impõe disciplina e rotina de estudo, Rick encara o próprio improviso como limitação. A consequência aparece sem demora. Um bom desempenho pode convencer produtores e anular a percepção de que ele só recicla maneirismos de “Bounty Law”, antigo programa que já não lhe serve de currículo suficiente.
Cliff protagoniza a virada que amplia o risco físico. Ao dar carona a uma jovem com ligações a uma comunidade instalada num rancho, ele entra num território em que cordialidade e ameaça se confundem. A visita altera o curso do enredo por três razões. Primeiro, apresenta um núcleo que habita a margem da cidade e observa celebridades de longe, fundamento de tensão social. Segundo, revela que a violência latente circula fora dos sets, deslocando o foco de cenas encenadas para um perigo real. Terceiro, coloca Cliff em situação em que sua autonomia decide o que acontece a seguir, sem rede de proteção de estúdio. A partir desse encontro, a narrativa carrega um pressentimento que encurta as próximas decisões.
Quando Rick considera a temporada italiana, o filme usa elipse para condensar uma fase de tentativas. A montagem mostra resultados econômicos e efeitos de imagem. Ele grava longas de baixo orçamento, aprende outras rotinas, retorna com uma esposa e com a autoestima parcialmente recomposta, mas a indústria de origem continua instável. Essa passagem cumpre função de relógio e causa. Ao voltar, Rick está mais consciente da urgência. O contrato de sua casa, a dependência de Cliff, a necessidade de um papel que mude a conversa. Tudo isso cria um prazo invisível. O tempo da narrativa e o tempo da carreira passam a bater juntos.
A direção de Quentin Tarantino intervém de modo pontual na informação e no ponto de vista. Quando a rádio toca e os anúncios localizam a ação em fevereiro e nos meses seguintes, o som diegético guia o espectador por deslocamentos sem mapas. Robert Richardson, diretor de fotografia, acentua luzes douradas e neons frios que se alternam conforme a cena pede contemplação ou alerta. Isso não é ornamento. Quando a câmera circula por carros e fachadas, antecipa encontros e define trajetos que vão se cruzar. O ritmo se ajusta entre diálogos extensos, que frequentemente contêm regras de um jogo de poder, e explosões de ação que cobram promessas feitas nas conversas anteriores.
A disputa de ego entre Cliff e Bruce Lee, encarnado por Mike Moh, funciona como estudo sobre status no set. A briga, além de cômica, produz consequência prática. Cliff ganha a reputação de indisciplinado e perde convites, o que o empurra ainda mais para a órbita de Rick. Essa cadeia de eventos confirma a causalidade do roteiro. Um momento de exibição de força custa trabalho. Trabalho perdido gera dependência. Dependência reduz opções no desfecho da noite. Nada fica solto. Cada gesto interfere no próximo degrau.
Sharon, por sua vez, aproxima a narrativa de um limite histórico conhecido. Sua presença reajusta a tensão a cada aparição pública. Quando entra numa sala de cinema para ver a própria imagem, a montagem prolonga risadas e reações, porque essa recepção altera a percepção de valor do que ela faz. O público dentro do filme legitima ou questiona seu futuro, e isso informa o perigo que se avizinha quando as tramas paralelas se aproximam. O espectador entende que uma noite específica pode concentrar anos de expectativa.
A sequência derradeira reúne os três vetores. Rick tenta salvar a carreira em casa, em noite decisiva. Cliff, sob efeito de decisões tomadas ao longo do dia, assume o posto de escudo e catalisador. Sharon representa o que está em jogo além da vaidade, que é a continuidade de uma vida que mal começou a colher frutos. A montagem encurta espaços e acelera a colisão. As escolhas dos protagonistas, somadas aos encontros anteriores, determinam quem enfrenta o quê e em que ordem. O risco é alto e concreto. A consequência imediata redefine vínculos e ajusta o sonho de permanecer em cena. A resolução permanece preservada, mas a trajetória demonstra que a cidade recompensa quem lê seus sinais a tempo e pune quem ignora a mudança do relógio cultural.
“Era uma Vez em… Hollywood” amarra essa rede com atenção a causas e efeitos e demonstra que a sobrevivência profissional no cinema depende menos de charme e mais da capacidade de decidir sob pressão. Leonardo DiCaprio modela um ator que alterna vaidade e disciplina conforme o perigo cresce. Brad Pitt interpreta um profissional prático que resolve primeiro e pensa depois, o que move a trama quando falta espaço para diplomacia. Margot Robbie sustenta a promessa de futuro que dá peso à tensão. Tarantino costura esses arcos sem nostalgia passiva. Ele usa o passado como campo de teste para escolhas presentes. O resultado é um relato sobre objetivos, obstáculos, viradas e consequências, em que cada cena muda o jogo e cada decisão cobra seu preço.
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