O toca-discos gira lento. A agulha varre a ranhura. Só chiado. Na manhã de 22 de junho de 2022, no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife (PE), Paulo Diniz, o pernambucano que atravessou rádios e bares com um registro grave interrompeu sua rotina. Sobre o aparador de verniz gasto, LPs empilhados, lombadas gastas; ao lado, uma caixa de som pareada ao celular, discreta como utensílio de cozinha. A cadeira de rodas encostava. O contraste estava ali, inteiro, a matéria viva dos discos, hoje arquivo, e a contenção imposta por anos de doença e hemodiálises, que encolheram saídas e encontros sem apagar o gesto de compor, enquanto a cidade, além da varanda, mantinha o passo impessoal de secretaria de escola na metade da tarde.
Em primeiro plano, um compacto de 1970, selo Odeon, etiqueta levemente desbotada. “Quero voltar pra Bahia”, parceria com Odibar, correu em radiolas domésticas e players de cartucho de emissoras de norte a sul; virou hino de esquina e de bar e registrou, com data e endereço afetivo, a homenagem a Caetano Veloso durante o exílio em Londres. O plástico guarda riscos miúdos, lembrança de dedos apressados. A capa de papel escurece nos cantos, memória de balcões e de manuseio. Na borda do vinil persiste uma marca quase invisível, cicatriz do uso, o tempo assinando a matéria.
Antes desse objeto ganhar a rua, houve Pesqueira, um garoto de quatorze anos no microfone dos serviços de alto-falante preso ao poste da praça, recados de feira escritos em papel fino. Depois veio Recife, com turnos na fábrica de doce, crooner até o amanhecer e baterista em conjuntos de baile, salões de azulejo frio, abajures âmbar sobre o balcão e cheiro de cerveja derramada. Nos corredores da Rádio Jornal do Commercio, ele aprendeu a medir o tempo entre vinhetas, o relógio da emissora colado na parede a marcar entradas, a fala cronometrada, o ouvido colado ao retorno, e os cartuchos alinhados ao lado da mesa de oito canais, prontos para o disparo. O circuito incluía a escada de serviço e a quitanda da esquina, lugar de comprar papel para letras e promissórias miúdas, com o fiado anotado a lápis num caderno de capa dura, assinatura do dono e preço no rodapé.
Em 1964, uma passagem de ônibus e a rodoviária o levaram ao Rio de Janeiro, contrato na Rádio Tupi. Depois vieram Mayrink Veiga e Rádio Globo. Nas cabines de revestimento cerâmico, café requentado na borda e prateleiras de bobinas, o relógio de parede ensinava entradas e saídas no minuto exato. Ali aprendeu a deixar a pausa caber no ponteiro, a soltar a vinheta sem soluço, a costurar locução e música no giro dos potenciômetros. Em 1966, gravou “O chorão”, de Edson Mello e Luiz Keller, estreia como cantor em catálogo de gravadora; ainda tateava entre rock, samba-rock e canção romântica, mas já carregava a medida interna de quem decora o mapa das cabines. O começo tinha cheiro de fita magnética e pó de estúdio.
Em 1970, “Quero voltar pra Bahia” fez o resto. O refrão de saudade correu por antenas domésticas e bares de esquina, atravessou quitandas e secretarias de escola, embalou ônibus cheios no fim do expediente, e o compacto ganhou tiragens sobre tiragens, preços reescritos a caneta na etiqueta e registros datados na programação, enquanto o operador marcava o giro na rotação da tarde, em folha presa no mural. A notícia já gravada virou rotina de recreio. De pátio em pátio, o país aprendeu de ouvido e repetiu o estribilho sem erro.

No ano seguinte, 1971, o LP “Paulo Diniz” trouxe “Pingos de amor”, novamente com Odibar. Paulo Diniz viu sua melodia sair das vitrolas e atravessou décadas: voltou em reedições de catálogo, reapareceu em coletâneas, ganhou noites de karaokê, retornou à circulação popular nas regravações dos anos 1990 e entrou no repertório de bar, de táxi e de festa de bairro. Aos domingos, a equalização enxuta dos aparelhos domésticos deixava o baixo em trilho e os metais em brilho curto; nas bancas de jornal, a canção dividia espaço com capas chamativas e listas de sucesso. O nome que vinha de Pernambuco foi fincando endereço no país, de fitas cassete no porta-luvas a colunas de parada musical, até caber inteiro numa cozinha de azulejo quadrado, ao lado de panelas e LPs empilhados.
Na virada de 1972, o auge tomou outro rumo: poemas ganharam corpo de canção e chegaram ao LP “E Agora, José?”. “E agora, José?”, “Canção do exílio” e “Vou-me embora pra Pasárgada” receberam arranjo de economia precisa, reverb curto, dinâmica contida e violões em ataque limpo, tomados em take de estúdio que dispensava enfeite. As letras saíram das lombadas e foram parar na vitrola de sala, atravessaram corredores de secretaria de escola, apareceram no quadro de giz com autoria completa, poeta e compositor lado a lado, e seguiram para o rádio em rotação diária, sem folga. Nos ouvidos de um país que aprendia métrica fora do manual, a poesia passou a caber no bolso da camisa e no intervalo do recreio, entre a chamada e o sinal.
Havia humor e crítica social, e havia o cronista que convertia a vida diária em canção, um artesão atento ao corte do acetato, à cola que firmava capas, à ficha técnica com nomes de naipes e ao carimbo da OMB na carteira, tudo passado pelo treino de estúdio. Ali, ajustava o ganho no pré-amplificador valvulado, conferia a fita master, pedia grave enxuto aos técnicos, mantinha reverb curto na sala e cobrava fecho limpo dos sopros, com o contrabaixo correndo no trilho do baterista e a mão pousando no fader até o ponto exato. O relógio marcava a entrada, o acionamento do playout armava a vinheta, os VU-meters oscilavam como uma régua de disciplina. O auge tinha aparência de verniz recente e de poeira que não se varre por completo da mesa.
A sombra veio cedo. Entre o fim dos anos 1980 e meados dos anos 1990, uma infecção contraída em banho de rio, esquistossomose, começou a roubar passos, trouxe consultas seriadas, exames de imagem e receitas carimbadas, até que a cadeira de rodas entrou na rotina e as gravações ficaram suspensas por quase uma década. A partir de 2005, o comprometimento nos membros inferiores se agravou; em 2016, o artista encerrou as apresentações públicas, mantendo porém cadernos com letras e melodias de bolso, anotações a lapiseira curta guardadas em envelopes de papel pardo, a ideia em espera entre sessões de fisioterapia e retornos de clínica. Por anos, repetiu-se o rótulo da “doença misteriosa”, mais alto que a informação simples dos prontuários.
No Recife, em Boa Viagem, a rotina de hemodiálises alternava-se com tentativas de voltar ao estúdio: conversa com produtores, inventário de fitas, a vontade de registrar um single tardio que coubesse na agenda clínica e no orçamento de sala, músicos e mixagem. Entrou em estúdio. Em 2019, havia o capricho de quem já aprendeu todas as medidas e havia também o limite do corpo, que pede pausa e água; do lado de fora, a cidade seguia, ônibus cheios, vendedores na calçada, e o táxi-lotação da esquina fazia zigue-zague para escapar do trânsito.
O mercado, com a lógica da reposição, deixou títulos fora de catálogo. A discografia que enchia rádios nos anos 1970 passou a viver de coletâneas e reedições esparsas em CD, com novos números de catálogo e, por vezes, sem ISRC nos metadados, confusão para bibliotecários e tropeço na aferição de execução pública. Ainda assim, os fonogramas seguiram gerando regravações e algum direito no ECAD, pingos regulares ao longo do ano, enquanto o fiscal de loja, prancheta embaixo do braço, anotava pedidos nas semanas de festa. Nos jornais locais, repetia-se que os discos “venderam muito” e que a memória resistia; na prática, a prateleira rarefeita não conduzia o ouvinte novo ao disco certo, apenas ao nicho sem lombada.
Convém aqui um contracanto. Por causa de letras e parcerias, muita gente o tomou por baiano, erro persistente desfeito por qualquer biografia minimamente atenta, que o situa em Pesqueira, Pernambuco, 24 de janeiro de 1940. Do mesmo modo, a assinatura de sucessos atribuídos ao cantor sozinho quase sempre traz, na ficha, o nome de Odibar, parceiro de décadas e coautor de “Pingos de amor” e “Quero voltar pra Bahia”, informação estampada em encartes, dicionários de música e catálogos de gravadoras, prova material que dispensa folclore. O rótulo não sobrevive ao documento.
Em casa, no Recife, a notícia sobre Paulo Diniz saiu cedo, por volta das sete da manhã. As notas repetiram o essencial: 82 anos, causas naturais, Boa Viagem, Zona Sul do Recife (PE), um repertório popular que inclui “Um chope pra distrair”, “Canoeiro”, “Piri piri” e “Ponha um arco-íris na sua moringa”. Nas caixas da família, fotografias com borda serrilhada, recibos de cachê dobrados e folhas de programação guardam a maré alta de outra década. No aparador, fica um envelope pardo com duas fotos 10×15 e um recibo amassado de show no interior, tinta a apagar, marca seca do tempo; alguém recolhe os papéis, fecha a gaveta de madeira e a sala volta ao barulho miúdo da rua, enquanto uma caixa de som toca “Pingos de amor” num volume baixo, suficiente para deixar a marca dos dias.