Filme com Denzel Washington, baseado em livro  que ficou 50 semanas entre os mais vendidos, está na Netflix Divulgação / 20th Century Fox

Filme com Denzel Washington, baseado em livro que ficou 50 semanas entre os mais vendidos, está na Netflix

“Chamas da Vingança” organiza sua história a partir de um contrato simples. Uma família contrata um ex-agente para proteger a filha em uma cidade que convive com sequestros recorrentes. O acordo nasce de necessidade, não de afinidade. O profissional chega ao posto com cansaço visível, um passado que o assombra e a intenção de cumprir horários, trajetos e relatórios. A criança, curiosa e persistente, insiste em furar a formalidade, propõe conversas, pede presença além do protocolo e, aos poucos, converte a proteção em compromisso pessoal. Essa transição, registrada em cenas de rotina escolar e treinos de natação, redefine o objetivo do protagonista. Ele continua empregado, mas agora guarda algo que ultrapassa o salário.

O primeiro grande abalo vem com o sequestro. A quebra da rotina começa com carros oficiais que não são o que parecem e termina com tiros e confusão, sustentados por uma rede que copia procedimentos de Estado para legitimar a abordagem. O protagonista tenta resistir, é baleado e falha na tarefa central. A perda não some na cena seguinte, ela reescreve a motivação do personagem. Sem confiança nas instituições, e com a autorização explícita da mãe para ir até onde for necessário, ele adota um procedimento direto: mapear a cadeia do crime por etapas e subir degrau por degrau até o comando. A causalidade passa a obedecer a uma linha objetiva. Cada fonte consultada precisa fornecer um dado verificável, e o avanço só ocorre quando uma pista encontra a seguinte.

O filme corrige a impressão de facilidades quando detalha como informações sensíveis mudam de mãos. Em vez de acesso instantâneo a dados bancários, o protagonista e um aliado buscam um intermediário que presta serviço para escritórios de advocacia, alguém que prepara pastas de seguro e folhas de pagamento. Para alcançá-lo, o protagonista não confia em um único depoimento. Ele cruza horários de visitas, confere agendas, intercepta uma mensagem e segue o entregador até um depósito. Ali, em meio a caixas, encontra cópias de contratos e um pen drive com planilhas de repasses. Não há senha quebrada em um clique, há espera, deslocamento e o risco de ser encurralado por seguranças do próprio escritório. O conteúdo dessas planilhas liga pagamentos de resgate a uma conta controlada por um operador conhecido no submundo. Essa prova material muda a escala da investigação, porque transforma desconfiança em contabilidade.

As cenas de interrogatório evitam repetição e ganham função específica na progressão do conflito. Em um encontro na oficina, o alvo tenta inverter a situação com a chegada de cúmplices e quase consegue. O protagonista escapa por um corredor estreito, acerta tiros de cobertura e volta ao ponto de partida com menos munição e mais pressa. O fracasso parcial não empurra a trama por conveniência; ele exige revisão de rota, troca de veículo e busca por um informante que valoriza o próximo passo. Em outra abordagem, em um clube noturno, a informação útil não vem de tortura imediata, mas da leitura de uma conta de consumo e do reconhecimento de uma assinatura repetida em recibos. Essa variação evita a sensação de que todos confessam por medo e reforça a ideia de que o avanço combina pressão direta e verificação documental.

Enquanto isso, o pai da menina tenta conduzir o caso por vias oficiais e se deixa aconselhar por um advogado que promete discrição e rapidez. O filme introduz dúvidas sobre a integridade desse conselheiro por detalhes concretos. Ele orienta depósitos em parcelas idênticas, com prazos que coincidem com vencimentos de empréstimos do próprio pai. Em reunião, a mãe estranha a coincidência e exige segunda opinião. O pai consulta um gerente, por telefone, e pede que confira a origem de uma cobrança. A ligação retorna com a informação de que a conta indicada é de passagem e não de família do sequestro, o que acende o alerta e abre fissuras na confiança doméstica. Essa checagem adicional retarda a virada central e adiciona tensão útil sem recorrer a atalhos. Quando a criança é dada como morta após uma entrega sabotada, o pai desaba e o protagonista endurece. A mãe, dilacerada, mantém o Norte: quer os culpados identificados e a cadeia do crime exposta.

A direção muda o foco visual quando o protagonista opera no limite. Durante perseguições, a montagem alterna close no rosto dele com planos mais abertos que deixam clara a geografia das ruas e saídas. Esse desenho espacial altera a compreensão da cena, porque mostra o motivo de cada desvio de rota e a razão tática de uma freada ou de um tiro para o chão. O som trabalha de modo funcional. Em negociações por telefone, o barulho da cidade recua e a voz do interlocutor ganha nitidez. O efeito é prático, aponta a prioridade do momento e alonga a espera com propósito, sem inflar a tensão antes de o relógio dramático existir em cena. Quando a decisão é tomada, a música cessa e deixa o impacto nascer da fala e do ato subsequente.

O enredo sobe um nível quando o protagonista conecta as planilhas do depósito ao circuito dos sequestros e encontra o nome do operador que comanda as operações por voz. Esse personagem age sem mostrar o rosto e se protege por intermediários que não se conhecem entre si. Para alcançá-lo, o protagonista precisa desmontar uma peça rara: o advogado que aconselhou o pai. Ao cercá-lo em um estacionamento, não obtém confissão automática. O homem nega, tenta ganhar tempo, cita cláusulas e ameaça com reputações. O que quebra a resistência não é uma falha isolada, é o confronto entre documento e discurso. O pen drive com os repasses traz sua assinatura digital, e a pressão decisiva ocorre quando o protagonista liga o viva-voz e faz o operador chamar o advogado pelo apelido reservado. Esse cruzamento de prova e reconhecimento vocal fecha o cerco e abre a porta para rastrear a família do operador.

A peça que faltava é a descoberta de que o pai aceitou, no início, uma encenação de sequestro, orientado pelo advogado, na crença de que o seguro resolveria as dívidas. A decisão, tomada antes da história começar para o espectador, explica a precisão do ataque e a facilidade com que os criminosos manipularam horários. O roteiro não trata essa revelação como truque. Ele planta sinais em diálogos, em recibos e em consultas bancárias feitas às pressas. Quando a verdade aflora, as consequências não são apenas morais. A mãe expulsa o advogado da casa, rompe com o marido e reforça o pedido ao guarda-costas para que continue, agora com total transparência. A cidade, representada por policiais honestos e corruptos em disputa, reage. Parte tenta capturar o protagonista por vingança, parte fornece o caminho para chegar ao operador.

Os confrontos finais seguem a regra de causa e efeito. O protagonista encontra a localização da criança através de uma ligação que exigiu três passos anteriores e uma troca com um parente do operador. Antes de chegar ao ponto, ele é interceptado em uma ponte. A cena, longe de confundir, deixa claras as posições com planos que mostram barreiras, carros de fuga e saídas laterais. O protagonista não avança no impulso. Ele recua, contorna, cria um desvio e reaparece pelo lado oposto, usando uma ambulância como cobertura. O tiroteio que se segue tem função narrativa definida. Disparos abrem caminho, mas também travam decisões. Quando um aliado é atingido, a prioridade muda e a perseguição fica para depois, o que cobra minutos preciosos e adia o encontro com a voz do mando.

A negociação derradeira revela a condição real da menina e exige uma troca de vidas. O protagonista, já machucado e ciente do custo de tudo que fez, escolhe oferecer a própria vida para resgatar a criança e a mãe. Essa decisão resolve arcos simultâneos. Repara a falha original de proteção, cumpre a promessa feita na rotina doméstica, expõe o operador ao olhar público e encerra a sequência de punições individuais. A montagem desacelera para que a escolha fique legível. Caminhadas longas, respirações pesadas e olhares sustentados constroem a passagem de responsabilidade. A mãe abraça a filha. O protagonista entra no carro dos adversários, consciente do destino. O efeito dessa escolha se desdobra na sequência seguinte, quando autoridades, munidas de documentos e depoimentos, executam prisões. O percurso particular abriu margem para uma resposta institucional, não por acaso, mas porque deixou provas circulando.

A estrutura cumpre os quatro movimentos básicos. Apresentação direta do contexto e do contrato. Desenvolvimento que combina pistas materiais, interrogatórios variados e retrocessos que custam tempo e aliados. Escalada de tensão com geografia legível e decisões que alteram o rumo pelo que revelam, não por truques externos. Resolução coerente com a promessa original, com o preço proporcional ao que foi rompido no sequestro. Onde há atalho, o filme o compensa com verificação. Onde a informação parece cair no colo, ela vem ancorada em recibos, gravações e cruzamentos. O pai não é reduzido a instrumento da virada, ele vacila, tenta verificar, esconde o pânico e, quando o plano falha, arca com a própria ruína.

Os diálogos sustentam a progressão. A mãe dá a autorização que redefine limites. O advogado revela seu elo ao repetir verbos e prazos iguais aos do manual de seguro. O operador mantém o controle por telefone até que um detalhe contábil o traia. A encenação favorece mãos, rostos e documentos. Quando a cidade aparece ampla, não é para decorar, é para explicar por onde um carro escapa e por que o outro não consegue cercar. O som estica a espera quando o relógio interno existe, e recua quando a ação precisa respirar sem avisos artificiais.

“Chamas da Vingança” fecha cobrando cada decisão com consequência proporcional. O contrato de proteção, a falha, a investigação, a revelação sobre o pai e a troca final compõem uma linha contínua, em que objetivos mudam diante de perdas reais e onde a verdade não vem em discurso vago, mas em provas que amarram pessoas, números e lugares. A promessa feita à criança, transformada em norte, guia o filme até o desfecho e deixa um rastro concreto: a cidade entende quem lucra com o medo, a família conhece o preço dos atalhos e o protagonista encerra sua trajetória na única chave que ainda lhe restava, a da reparação.

Filme: Chamas da Vingança
Diretor: Tony Scott
Ano: 2004
Gênero: Ação/Crime/Drama/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★