Tenho um amigo que mora em Copenhague. Quando alguém lhe pergunta de onde ele é, diante de sua resposta “sou brasileiro”, a reação mais comum dos dinamarqueses é um misto de compaixão e curiosidade, como se ele tivesse acabado de confessar que nasceu em cima de uma árvore tropical, foi amamentado por uma onça-pintada, alfabetizado por papagaios e, quando criança, brincava de saltar sobre sucuris.
Também já houve quem perguntasse a ele se era difícil se acostumar a usar roupas no dia a dia.
É curioso como a xenofobia estrutural não se apresenta necessariamente em gritos na rua ou ataques racistas explícitos. Ela se infiltra no cotidiano com a sutileza de uma mosca que pousa na borda da sua xícara de café. Você percebe, se incomoda, mas continua bebendo.
Eu mesmo já fui vítima dessa modalidade soft de preconceito internacional. Quando digo que moro na Eslovênia, invariavelmente alguém reage com a pergunta: “Mas por quê?”. Como se fosse impensável que alguém, vindo da gloriosa terra do samba e da caipirinha, resolvesse escolher uma vida entre montanhas e lagos gelados. A subentendida lógica é que eu deveria estar em Copacabana de bermuda florida, nunca numa biblioteca eslovena lendo um tratado obscuro sobre o Império Austro-Húngaro.
Essa é uma das sutilezas da xenofobia estrutural: ela sempre carrega uma receita prévia sobre o que você deveria ser. Brasileiro? Sambista, preguiçoso, festeiro. Alemão? Rígido, eficiente, organizado. Italiano? Gesticula, fala alto e cozinha bem. O problema é que, quando você não corresponde ao figurino, parece estar fora do script — como se fosse um erro de elenco numa novela.
Houve uma vez, por exemplo, em que um francês me disse: “Você não parece brasileiro”. O comentário, que parecia elogio, carregava a sutileza de um soco na boca do estômago. O que seria “parecer brasileiro”? Estar de sunga permanente, jogar futebol na rua e encerrar a conversa com “é nóis, mano”? A frase só revelou o óbvio: a xenofobia estrutural é construída sobre caricaturas que se perpetuam com a força de estereótipos mal digeridos.
E o mais fascinante é que essa estrutura é coletiva. Não é só aquele tio reacionário que resmunga contra imigrantes durante a ceia de Natal. É o sistema, as piadinhas no happy hour da firma, a surpresa mal disfarçada do vizinho, a burocracia que pede dez vezes mais documentos quando seu passaporte é de “país periférico”. Xenofobia estrutural é como wi-fi: invisível, onipresente e inevitável — com todo mundo conectado.
Outro dia fui renovar um documento. O funcionário, depois de olhar surpreso para o nome da cidade onde eu nasci — Taquarituba —, perguntou: “Mas você vai ficar muito tempo aqui?” Respondi que sim. Ele suspirou, digitou lentamente, como se cada tecla pesasse uma tonelada. A sensação era de que eu estava cometendo um crime existencial: ser estrangeiro. Não importa se pago impostos, se reciclo meu lixo, se nunca deixo o carrinho de supermercado largado no estacionamento. O que fica é a condição eterna de forasteiro.
E aqui mora o humor — e o perigo. Porque a xenofobia estrutural, com sua cara de normalidade, não dá manchetes. Não tem a violência explícita que indigna, mas a chateação miúda que se acumula. É o garçom que oferece o cardápio em inglês mesmo depois de você responder em esloveno. É o colega de academia que, a toda e qualquer oportunidade, pede para você falar de futebol. É o fiscal da fronteira que carimba seu passaporte com a mesma expressão com que se joga lixo fora.
Se fosse preciso elaborar um manual prático, diria que a xenofobia estrutural se resume a três mandamentos: nunca espere que o estrangeiro seja mais do que o estereótipo; surpreenda-se se ele ousar falar a língua local; lembre-o, com frequência, de que ele não pertence.
E assim seguimos, nós, imigrantes, equilibrando-nos entre o riso e a irritação. No fim, aprendemos a rir para não enlouquecer. Rir da moça que, ao descobrir que sou brasileiro, perguntou se tinha muitos macacos na rua de minha cidade — preferi responder que o que mais tinha, na verdade, eram sacis. Rir do senhor que me aconselhou a voltar para o “meu clima natural” porque, claramente, eu não “parecia feliz” no inverno europeu. Rir até de mim mesmo, que às vezes ainda caio na armadilha de explicar demais minha presença aqui, como se precisasse justificar a decisão de ser quem sou.
E talvez seja aí que o humor vire ferramenta de resistência. Se a xenofobia estrutural é um sistema invisível que tenta nos colocar em caixinhas apertadas, a risada é o jeito de escapar pelas frestas. De mostrar que não somos caricaturas ambulantes, mas pessoas inteiras, complexas, cheias de contradições.
Meu amigo em Copenhague, por exemplo, já aprendeu a responder de outra forma. Quando perguntam de onde ele é, ele olha sério, faz uma pausa dramática e diz: “Sou de Pirapora do Bom Jesus”. A confusão nos azuis olhos dinamarqueses é impagável. O estereótipo não estava preparado para essa informação. E é nessa rachadura do clichê que mora a liberdade.