O filme mais esperado do último ano acaba de estrear na Netflix e é um espetáculo cinematográfico Divulgação / Warner Bros.

O filme mais esperado do último ano acaba de estrear na Netflix e é um espetáculo cinematográfico

Denis Villeneuve parece operar por depuração. Em “Duna: Parte Dois”, retoma o gesto do primeiro capítulo e leva adiante uma ideia de cinema grande, mas não inflado; monumental, porém atento ao detalhe que decide uma cena. A decisão de dividir o romance de Frank Herbert em dois filmes conferiu ao diretor aquilo que faltou a outras adaptações: tempo para fazer da escala um argumento e não um ruído. O resultado é uma epopeia que exibe músculo técnico sem ceder à tentação de transformar o mito em cartaz motivacional.

O centro dramático é Paul Atreides, e a câmera sabe disso. Timothée Chalamet encontra amplitude para deslocar o personagem da vulnerabilidade estratégica para a assertividade sem alarde. A transformação ganha corpo sem que o filme precise anunciar a cada passo a chegada do messias; o aprendizado aparece como gramática corporal, postura que se fecha, olhar que deixa de pedir autorização. O garoto treinado para governar, despojado de tudo, aprende a governar a si mesmo. Quando a espada se torna extensão do gesto, a mudança já aconteceu; o que resta é a consciência do preço.

O roteiro, assinado por Villeneuve e Jon Spaihts, assume a via da síntese. Não tenta carregar o universo inteiro de Herbert, prefere mover-se por eixos: política, crença, desejo. A política não é palestra; é a fricção entre casas e interesses, exposta em cenas que avançam pelo contraste entre salas de poder e dunas abertas. A crença aparece como força concreta, tanto para os Fremen, que transformam sinais em destino, quanto para as Bene Gesserit, que tratam a fé como engenharia social de longo prazo. O desejo, por sua vez, não é apêndice romântico; é vetor de escolhas, e o vínculo entre Paul e Chani organiza uma parte essencial da narrativa.

Zendaya faz de Chani uma contra-esfera, cética, lúcida, capaz de impor a Paul o desconforto do questionamento. Não se trata de negar o mito; trata-se de não se entregar a ele sem resistência. Ao lado, Rebecca Ferguson desvela em Lady Jessica a inteligência fria de uma estrategista que também crê. A passagem à condição de Reverenda Madre e o diálogo subterrâneo com a filha por nascer espelham o projeto das Bene Gesserit: multiplicar variáveis, segurar os fios que podem, deixar os demais amarrarem sozinhos o tecido do futuro. Em “Parte Dois”, Jessica ganha ambiguidade sem perder a nitidez.

Villeneuve confia na imagem. Greig Fraser, diretor de fotografia, expande o repertório do primeiro filme, ora deixando o sol esmagar o quadro, ora esculpindo figuras contra a noite do deserto. As sequências em preto e branco associadas a Giedi Prime, de um contraste severo que parece aspirar as cores do universo, funcionam como contra-campo estético e moral; nelas, a brutalidade tem elegância gráfica, e é justamente essa elegância que inquieta. O desenho de produção de Patrice Vermette, com volumes que sugerem rituais antigos em materiais futuros, contribui para a sensação de arqueologia do porvir, como se tudo fosse ao mesmo tempo primitivo e pós-humano.

A trilha de Hans Zimmer aprofunda a busca por timbres que não domesticam a paisagem. Há espaço para vocais ásperos, percussões que imitam batidas internas e uma insistência em frequências que roçam o físico; o som deixa de ser apenas acompanhamento para se tornar experiência tátil. Mark Mangini e Theo Green, no desenho sonoro, operam com precisão cirúrgica, fazendo com que cada deslocamento de areia, cada respiração sob o véu, cada roçar de tecido, componha uma ecologia auditiva coerente. O espectador não apenas vê o deserto, ele o escuta por dentro.

A ação, quando irrompe, evita a verborragia visual. Joe Walker, na montagem, constrói dinâmicas que recusam o clipe fácil e apostam em leitura clara de espaço. A subida ao verme, ritual e risco, combina espetáculo e método; a coreografia do corpo sobre a criatura gigante preserva o senso de gravidade e fragilidade. O duelo com Feyd-Rautha, interpretado por Austin Butler, equilibra teatralidade e ferocidade, e encontra um registro onde cada golpe tem consequência narrativa. Butler se revela um antagonista de textura própria, quase anfíbio, magnético e repulsivo, dono de uma serenidade deformada. Javier Bardem, como Stilgar, flerta com a crença como humor e por vezes atrita o tom geral; ainda assim, sustenta o papel de guia devoto que lê destino onde muitos veriam cálculo.

Jacqueline West, nos figurinos, afina iconografias sem exibir tese; os stillsuits continuam a parecer tecnologia plausível, resultado de necessidade e não de adorno. Os trajes imperiais, por contraste, exalam formalismo que cheira a mofo, como se o poder estivesse sempre um pouco atrasado. O trabalho de efeitos visuais, com supervisão de Paul Lambert e contribuição decisiva da DNEG, permanece a serviço da encenação. Nada flutua sem peso, nada ruge sem deslocar ar; o digital não é um fim, é instrumento.

Há, por trás do espetáculo, um conjunto de ideias que o filme não simplifica. Arrakis, espelho conveniente de tantos territórios reais, funciona como estudo sobre extração e colonização, mas o filme evita o alívio de apontar vilões didáticos; prefere mostrar sistemas que perpetuam sua própria lógica. Os Fremen não são alegoria estanque, tampouco arquétipo puro; são sociedade em tensão, com linhas internas que pesam sobre Paul. O messianismo, eixo do romance de Herbert, ganha releitura atenta: “Parte Dois” permite que a ascensão pareça, do ponto de vista interno, necessária, e do ponto de vista externo, perigosa. O herói que se completa abre a porta do conquistador que se anuncia.

Florence Pugh, como Irulan, traz à trama a presença observadora de quem escreve para manter o fio da história. A função de seus registros serve menos de exposição e mais de contraponto, uma consciência que anota, pondera, calcula. Stellan Skarsgård e Dave Bautista, como barão e sobrinho, sustentam a lógica de um poder que apodrece de dentro, e que responde à ameaça com uma mistura de ostentação e paranoia. Léa Seydoux, em rápida participação, sugere todo um outro jogo dentro do jogo, lembrando que as Bene Gesserit não improvisam.

O filme avança com senso de inevitabilidade. Quando Paul percebe que não há vitória sem liturgia, e que não há liturgia sem sangue, o romance público e o drama íntimo colidem. Villeneuve evita a exaltação; filma a vitória como abertura de abismo, movimento coerente com o que se conhece do próximo capítulo literário. Não há redenção pronta, há uma escolha que cobra juros. O deserto, que aparentemente concede, cobra na mesma moeda: resiliência por disciplina, crença por obediência, sobrevivência por renúncia.

A comparação com a versão de 1984, de David Lynch, surge como exercício de genealogia, não de superioridade. Lynch tratou o material como delírio operístico, encontrou uma estranheza sensual que colide com o industrial. Villeneuve opta por clareza de desenho e texturas que parecem emergir do próprio ambiente, menos barrocas, mais geológicas. Onde o primeiro erguia alegorias como catedrais, o segundo cava camadas até expor a rocha. Ambos, a seu modo, perseguem a mesma indagação: o que acontece quando o destino encontra alguém disposto a aceitá-lo.

Importa sublinhar: “Duna: Parte Dois” não depende do espetáculo para convencer. Convence porque a encenação entende que a grandeza deve conter vida interior. A cada decisão de enquadramento, há cálculo; a cada corte, uma ideia de continuidade; a cada silêncio, a chance de o mito respirar sem inflar. A tecnologia, por abundante que seja, é meio para uma retórica visual que aposta na precisão. É cinema industrial de altíssimo perfil, entregue com consciência de forma.

Ao encerrar, o filme deixa a promessa de um terceiro movimento, e a promessa, aqui, não soa expediente. Soa consequência. A trajetória de Paul, a ambivalência de Chani, o projeto das Bene Gesserit, as fissuras do império, tudo aponta para a difícil equação que Herbert propôs: um salvador pode salvar e arruinar, às vezes na mesma hora. A beleza de “Parte Dois” é recusar o conforto de uma resposta e, ainda assim, satisfazer o apetite por cinema que pensa e vibra. O deserto continua a cantar; o eco, desta vez, vem com letra.

Filme: Duna: Parte Dois
Diretor: Denis Villeneuve
Ano: 2024
Gênero: Aventura/Drama/Ficção Científica
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Revista Bula

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