O homem não abdica de suas obsessões, em muitos casos a única coisa que lhe sobra ao cabo de toda uma vida de fantasias goradas, sonhos que nunca se realizam e medos ocultos nos meandros mais longínquos da alma, que não se dão por vencidos e voltam à carga sempre que notam uma instabilidade qualquer, como um vírus oportunista que ataca seu hospedeiro ao menor sinal de baixa no sistema imunológico. Feita essa ponderação, é possível dizer que “Zodíaco” constitui um tratado sobre as ideias malditas e a verdade como um bálsamo que alivia, mas nem sempre cura. Adaptado do livro-reportagem de Robert Graysmith, sensação em 1986, o roteiro de James Vanderbilt detalha os assassinatos em série não solucionados do Assassino do Zodíaco, um criminoso que ganhou o noticiário na São Francisco do final dos anos 1960 e início dos 1970, e David Fincher faz desse relato de fascínio pelo horror um enredo amplo o bastante para estender-se a abismos muito mais fundos do espírito humano, inexpugnáveis graças ao poder destrutivo da dúvida, à fragilidade da memória e a incapacidade da justiça em dar respostas para os anseios do cidadão comum.
Conhecido pelo apuro estético e pela exposição de personagens atormentados, Fincher constrói uma narrativa densa, sem conclusões convencionais no horizonte. Tudo começa com a imprensa de Vallejo, cidadezinha a cinquenta quilômetros ao norte de São Francisco, deliciando-se com um novo maníaco à solta. Ninguém dá uma pista satisfatória acerca da identidade e do modo de operar do criminoso, que envia mensagens cifradas aos jornais e à polícia, até que Graysmith mete no bedelho no caso. Sem que ninguém lhe pedisse, o novo cartunista do “San Francisco Chronicle”, pesquisa símbolos, letras do alfabeto cirílico e grego e ícones da sinalização naval a fim de desvendar o que Zodíaco poderia estar dizendo. Claro que ele não revelou seu verdadeiro nome, talvez intuindo que algum jornalista xereta se metesse a fuçar mais do que o habitual, e o diretor aproveita toda chance que pode para reforçar essa ideia de labirinto, no qual a audiência perde-se gostosamente.
O filme pretere os momentos de violência em favor das idas e vindas da investigação, os erros no processo, as picuinhas entre diferentes autarquias policiais e a permanente sensação de enxugar gelo daqueles que querem colocar um ponto final na trajetória macabra e exitosa do Zodíaco. Entre eles, estão David Toschi e William Armstrong, os dois inspetores responsáveis pela ocorrência, e Mark Ruffalo e Anthony Edwards são um capítulo à parte no que Fincher mostra. Toschi, um tira old school sem muito tato ou paciência para métodos que se não tardam a revelar-se ineficazes e enfadonhos, perscruta cada movimento do facínora, alimentado pela estranha convicção de que vai capturá-lo, e aí terão muitas contas a acertar. Não por acaso Toschi inspirou Clint Eastwood na composição de Dirty Harry, o anti-herói de “Perseguidor Implacável” (1971), de Don Siegel (1912-1991), e Ruffalo deixa-se tomar pela leviandade do candidato justiceiro, que, ao contrário do Armstrong de Edwards, balança em sua imperturbável devoção à técnica. O repórter veterano Paul Avery, de Robert Downey Jr., oferece um providencial contraponto ao caráter austero que o longa incorpora à certa altura, porém é mesmo Graysmith quem rouba a cena.
Jake Gyllenhaal encarna o protagonista frisando o temperamento aventureiro de Graysmith, um rapaz curioso, irrequieto e, o principal, avesso a armas e sangue. O filme alonga-se por décadas, e com isso Fincher urde uma crítica quase sutil às instituições — ao jornalismo, inclusive —, enaltecendo a determinação do indivíduo e seu norte moral, autônomo. “Zodíaco” é menos um suspense policial clássico que uma crônica sobre vencer o que os outros julgam impossível. Ainda que nem sempre se chegue à meta ou à justiça.
★★★★★★★★★★