A poeta que o Brasil deixou morrer em silêncio: prêmios não pagaram o aluguel, sopa fria e a palavra como único salário

A poeta que o Brasil deixou morrer em silêncio: prêmios não pagaram o aluguel, sopa fria e a palavra como único salário

São Paulo, meados dos anos 1990. No quarto estreito da Casa do Estudante, na Avenida São João, a lâmpada desenha um quadrado de luz sobre a mesa; o papel ondula e a tinta demora a secar. O trânsito sobe como um pano de fundo contínuo e, dentro desse ruído, uma mulher procura a dimensão exata da frase. Ela não pede licença e não busca plateia. Senta, respira, corta o excesso. O mundo chega inteiro, mas ela recolhe apenas o que cabe na palma, o resto aguarda do lado de fora. Um caderno com datas no canto; uma sopa que perde o calor; o intervalo microscópico entre dizer e escorregar. A poesia nasce nesse vão, onde precisão, pobreza e perseverança se tocam sem anúncio.

Em 1996, em entrevista ao programa “Jô Soares Onze e Meia”, então exibido pelo SBT, Orides Fontela sentou-se sob luzes frias, com “Teia” recém-lançado sobre o colo. O talk show de fim de noite pedia confidências rápidas, respostas redondas, riso fácil da plateia. Ela ofereceu outra cadência: voz baixa, pausas longas, atenção quase tátil à palavra. Não havia anedota pronta nem resumo biográfico para caber no bloco; havia concisão, escolhas cirúrgicas, recusa do enfeite. Quem esperava cronologia encontrou síntese; quem queria espetáculo viu um ofício que prefere a página ao holofote. Não era desdém. Era lealdade a uma forma de dizer que não expõe o essencial na vitrine do entretenimento.

O começo está longe de refletor e de vitrine: 1940, São João da Boa Vista, interior paulista sob o Estado Novo (1937 a 1945). A casa é simples, o quintal é curto, o trabalho é contado. Filha única de Álvaro Fontela, plainador em oficina de marcenaria, e de Laurinda Teixeira Fontela, dona de casa, ela aprende cedo que estudar é insistir e que livro se encontra na estante da Biblioteca Municipal e nas mãos emprestadas de vizinhos e professores. O trem corta a cidade em horários certos, o pó de giz assenta nas carteiras da escola pública, o sino da matriz organiza o sábado. Ainda adolescente, seus poemas ganham espaço no jornal “O Município”, assinaturas pequenas na coluna lateral. O que primeiro chama atenção não é a exuberância, é o arranjo: a linha curta, o verbo contido, a vontade de acomodar as ideias no espaço que a página permite. Na gaveta do pai, um alicate, uma torquês e duas flautas lembram que precisão e delicadeza podem caber no mesmo gesto; a menina observa e, mais tarde, transfere esse cuidado para o papel.

São Paulo a recebe no fim dos anos 1960 com pressa de ônibus e cheiro de tinta nas gráficas do centro, e ela responde com reserva. Na Universidade de São Paulo, nas salas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a filosofia dá instrumentos em um país de censura, vigilância difusa nos campi e pouca verba para a cultura. Entre escadas de pensão, o barulho das livrarias do centro e as horas de biblioteca, ela prepara “Transposição”, publicado em 1969, não como fogos de estreia, mas como um livro enxuto que já escolhe a contenção. Em 1973 surge “Helianto”, que amplia o alcance sem abandonar a medida. Nos anos 1980, “Alba” (1983) trata a luz como matéria sólida e “Rosácea” (1986) faz conviver pétala e metal. Em 1996, “Teia” condensa ainda mais o gesto, como se cada pausa tivesse peso. “Alba” recebe o Prêmio Jabuti e “Teia” é distinguido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, a APCA, mas as tiragens são pequenas, os adiantamentos são modestos e as resenhas aparecem quando podem. A cidade corre depressa, o mercado editorial respira curto e o reconhecimento, embora real, não altera o fim do mês; ela continua a trabalhar linha por linha, como quem passa a plaina até a madeira aceitar a mão.

De perto, o cotidiano não admite metáfora. Entre o fim dos anos 1980 e os primeiros 1990, com salários corroídos pela inflação e trabalhos intermitentes em bibliotecas e escolas, o dinheiro falta de modo irremediável. A notificação de despejo chega com timbre e prazo. O refúgio possível é a Casa do Estudante, no centro de São Paulo: quarto estreito, cama de ferro, armário de compensado, janela para uma empena de tijolos. Uma lâmpada de quarenta watts delimita o círculo de atenção, o corredor guarda um fogareiro compartilhado, o elevador de grades exibe uma folha de recados presa por tachinhas. No quadro, anúncios de aulas, um telefone anotado a lápis, o aviso do síndico pedindo silêncio depois das dez. Ao redor, gente que estuda, trabalha, some e aparece. Dentro, um caderno com datas, recibos grampeados, rascunhos. Ninguém imagina que, naquele espaço funcional, uma das vozes mais rigorosas da poesia brasileira dobra roupas com cuidado e alinha páginas no tampo da mesa. Sem alarde e sem lamento, ela puxa o caderno, respira fundo e reescreve.

Na primeira metade dos anos 1990, nos corredores frios da Casa do Estudante, na Avenida São João, as conversas começavam com simpatia e terminavam com a luz do hall já baixa. Depois de lançamentos no centro ou de leituras em bibliotecas, ela subia com um datiloscrito emprestado e, no dia seguinte, devolvia o maço de folhas com margens de lápis, colchetes discretos, setas onde um verbo sobrava, um adjetivo inflava, uma imagem cedia. Não era grosseria, era uma ética da palavra aplicada em voz e papel: pedir que a frase chegasse ao seu núcleo e ficasse ali. Às vezes bastava um “corta aqui” para esfriar a noite; às vezes a amizade resistia e se voltava a falar de livros na cozinha comum, chá em caneca lascada, janela aberta para o sopro quente da avenida. Nesse circuito de lançamentos apressados e suplementos culturais de domingo, onde a cordialidade performática valia quase tanto quanto o texto, ela não fazia concessões. O que cobrava do poema cobrava do diálogo, e é claro que isso tinha custo. Mesmo assim, continuava. E quando alguém se magoava e sumia por semanas, havia quem ficasse e voltasse a lhe entregar originais, porque a leitura dela, severa e limpa, tinha o raro poder de melhorar a página e, por alguns minutos, também a conversa.

Nada aqui se resolve pela fábula da pobreza genial. Há circunstâncias. Nos anos 1970 e 1980, a vida intelectual brasileira depende de redes frágeis e de políticas culturais que mudam de rumo com frequência. A poesia circula em tiragens pequenas, muitas vezes entre setecentos e dois mil exemplares, distribuídas por livrarias independentes e por poucos cadernos culturais dos grandes jornais. Os adiantamentos editoriais são modestos, os direitos autorais chegam tarde e as resenhas têm espaço irregular. A crítica universitária cresce, mas raramente atravessa a porta da rua. A pauta jornalística prefere romances de fôlego e novidades internacionais. Nesse quadro, prêmios funcionam como selo de existência mais do que como sustento. O Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, aumenta a visibilidade. A distinção da Associação Paulista de Críticos de Arte, a APCA, coloca o nome em circulação. O aluguel, porém, não se altera com medalhas. É um ofício fino inserido em um mercado grosso e essa desproporção pesa no cotidiano.

Orides Fontela
Orides Fontela, precisão no olhar e economia no gesto

O efeito da obra é concreto. Em “Transposição” de 1969, ela fixa coordenadas: versos curtos, elipses frequentes, vocabulário filosófico que recusa confissão direta. O eu aparece sem autobiografia e a música nasce do corte justo. “Helianto” de 1973 amplia o campo sem perder a economia. Imagens solares roçam matérias frias, a sintaxe se adensa em justaposições, o substantivo pousa na linha como coisa, com lugar e borda. “Alba” de 1983 marca inflexão: a luz entra como assunto e instrumento, poemas matinais que não abrem para todos, apenas para quem aceita a espessura da linguagem. A dicção se torna mais impessoal e mais concentrada, com verbos podados e articulação rente ao osso. Em “Rosácea” de 1986, a pele da flor toca o aço e o verso sustenta esse encontro sem ornamento. Pétala e ferrugem, delicadeza e corte. “Teia” de 1996 radicaliza a rarefação. O sentido se firma nos vazios, nas pausas, nos fios de ligação que o leitor precisa tocar com cuidado. De livro em livro, há ganho técnico e perda voluntária do supérfluo. A tolerância à vaga beleza diminui e a tensão formal cresce. Fica a impressão de que cada peça foi aparada até mostrar apenas o essencial.

No centro de São Paulo, a rotina desenha um mapa próprio. As manhãs se abrem com caderno e caneta que falha. As tardes se quebram por pequenos trabalhos em bibliotecas públicas e escolas. As noites de leitura puxam a eletricidade do corpo como resistência aquecida. O ônibus injeta ar quente pela janela, a rua devolve cheiro de asfalto molhado, o relógio do prédio vizinho separa a hora em quartos. Um envelope chega carimbado pelos correios, carta sucinta que elogia “Alba” e escreve duas linhas de admiração. Outro traz a cobrança do aluguel, data de vencimento sublinhada a lápis. Entre esses dois papéis, elogio e dívida, abre-se o intervalo decisivo. É ali que o poema se faz, num espaço apertado onde reconhecimento não compra arroz e contas não aceitam metáfora; nasce da escolha paciente de cada termo, do recuo que evita o excesso, do avanço que não desperdiça fôlego.

Na primavera fria de 1998, os corredores do Sanatório São Paulo, em Campos do Jordão, cheiravam a antisséptico e lã úmida. O lençol era áspero, o cobertor ralo, a lâmpada ficava acesa mesmo com o dia claro. Ela respirava em golpes curtos, como quem sobe uma escada invisível, e o prontuário escreveria, sem figura de linguagem, insuficiência cardiopulmonar decorrente de tuberculose. No dia 2 de novembro, um médico de plantão notou, entre os poucos objetos na mesa de cabeceira, um volume de poemas com o nome impresso. Reconheceu a autora, avisou a secretaria, preencheu o registro completo. Esse gesto simples impediu que o corpo seguisse o protocolo dos desconhecidos e devolveu à morte a gravidade de uma vida inteira trabalhada à vista de quase ninguém.

O país chegou tarde, como costuma. Tentaram colar a etiqueta cômoda da artista maldita, que pacifica a leitura e simplifica o destino. Não serve. O que serve é reler o conjunto e aceitar que biografia não explica a obra, e que a obra não é verniz sobre a dor. Ela forjou ali o seu lugar de ar contra a escassez, o espaço em que a língua ganha justeza e dispensa espetáculo. Depois que o corpo saiu de cena, foi isso que ficou: uma voz que não pede piedade e, ainda assim, comove pelo cuidado que teve com cada palavra.

O reconhecimento póstumo ganha corpo quando as reedições e os estudos deixam de ser episódicos e formam corrente. Em 2015, “Poesia Completa” reúne “Transposição”, “Helianto”, “Alba”, “Rosácea” e “Teia” e recoloca a sequência em perspectiva única, permitindo que leitores de outra geração vejam a curva inteira, sem lacunas. O ciclo de debates e dossiês universitários se expande, clubes de leitura recuperam o fio, editoras independentes consolidam um catálogo de autoras antes esparsas, e a poesia de Orides volta a circular em salas de aula e festivais que antes privilegiavam a prosa. O interesse não está apenas no destino difícil. Está no aprendizado de medida que resiste à grandiloquência e à tentação memorialística. Em um país que historicamente negligencia o detalhe, essa obra ensina a atenção como forma de justiça.

Se uma tese precisa ser dita com nitidez, cabe assim: Orides Fontela levou ao extremo a ideia de que a poesia não explica o mundo e, em vez disso, recorta nele um espaço respirável. Para sustentar essa escolha, sacrificou a sociabilidade do espetáculo, trocou visibilidade por exatidão e suportou o custo material e afetivo de um ofício raro em amparo institucional. As décadas pelas quais passa, da ditadura à redemocratização, da hiperinflação ao Plano Real de 1994 e à precarização do trabalho intelectual, não são pano de fundo decorativo; são o clima que encarece o gesto de concentrar a linguagem. O que muitos chamaram de reclusão era fidelidade; o que tantos viram como aspereza, cuidado com a palavra. Entre penúria e página, ela escolheu a página; ao escolhê-la, afinou a penúria até que virasse linguagem compartilhável.

Em uma mesa de biblioteca, um exemplar gasto de “Poesia Completa” (Hedra, 2015) está aberto; a lombada cede um pouco e o papel guarda marcas de lápis. Lá fora chove fino, o relógio avisa a hora, alguém fecha uma janela e a madeira devolve um estalo. Quem lê encosta o dedo na margem silenciosa e respira junto com a cadência curta do poema. Não há biografia em desfile; há uma presença que se sustenta sem aparato. A morte retirou o corpo da cena, não a voz. O que permanece é essa claridade baixa que dispensa truque, um modo de aparar a sílaba até que ela diga o máximo com o mínimo. A literatura de um país também se mede por essa claridade discreta e inflexível. Os livros esperam por quem chega e, quando abertos, acendem um sinal que tela nenhuma consegue traduzir.

Revista Bula

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