No retrato amarelado, o rapaz de camisa xadrez encara uma escada curta como quem mede a própria febre. Não há teatro, há a nitidez de quem calcula o risco. É o Rio no fim dos anos 1960; depois do AI-5, a noite alonga os corredores do poder, os rádios tocam com cautela e os festivais de televisão viram arena. Nos estúdios, a fita magnética, a reverberação de placa e os arranjadores testam colagens que juntam a rua e a erudição; nas redações, os linotipos aquecem o chumbo e os dedos cheiram a tinta, enquanto os carimbos da censura deixam sombras nas colunas. Ele escreve para as canções e para a página, atravessa cabos, microfones e caixas de som, entra no ruído como quem fabrica uma bússola. O país trepida; a página não perdoa; ele escolhe a brasa.
Teresina, 1944. O menino do Nordeste aprende que a língua pode ser faca e festa; cresce entre rádios de válvula, cadernos gastos e sessões de cinema de bairro. No início dos anos 1960, passa por Salvador e encontra um circuito universitário que fervilha em música, teatro e invenção; em 1963, segue para o Rio para estudar jornalismo, pouco antes de o golpe de 1964 apertar o país. As cidades o empurram para a velocidade do período: aulas pela manhã, madrugadas em cineclubes, ensaios em apartamentos, redações barulhentas. Nos primeiros trabalhos, ele ocupa mesas do “Correio da Manhã” e do “Jornal dos Sports”, aprende prazos, cortes e pauta; descobre que a canção pode ser um laboratório crítico. O nome completo é Torquato Pereira de Araújo Neto; na assinatura, quase sempre, apenas Torquato, como quem cortasse o excesso do próprio destino. A ideia de uma “Geleia Geral” lateja desde cedo.
A data de chegada, 9 de novembro, cola-se para sempre à de partida, 10 de novembro de 1972. Vinte e oito anos dão para uma obra? No caso dele, dão para uma dobra: poemas e letras em discos de 1968 e 1969, artigos em coluna do jornal “Última Hora” e experimentos de cinema que rondam Teresina e o Rio. A morte selará um ciclo breve e desobediente; antes disso, a vida desenha uma linhagem que atravessa a canção brasileira, a crônica cultural e a poesia que recusa vitrines. O dado é seco; o que persiste é o corte.
Na canção, ele é parceiro decisivo. Em 1968, escreve com Gilberto Gil “Geleia geral” e “Marginália II”, faixas de um ciclo de estúdio que mistura colagem, ironia e um inventário de país em transe. Em 1968, com Caetano Veloso, assina “Mamãe, coragem”, lançada na voz de Gal Costa no LP coletivo “Tropicália ou Panis et Circencis”. Essas canções nascem enquanto o regime endurece, as prisões e os exílios redesenham palcos e programas de televisão, e a música popular brasileira testa choques de arranjo sob a batuta de Rogério Duprat. A Tropicália deixa de ser apenas rótulo e se assume como postura: antenas e sertão, ruído urbano e melodias de rádio, um modo de pensar a língua e a cena. A poesia de Torquato fornece o sumo; a orquestração, a bancada sonora.
A vocação experimental também transborda para o cinema. Em 1971, no Rio, ele entra em “Nosferatu no Brasil”, curta de Ivan Cardoso rodado em Super-8, que inaugura um terrir que cruza horror, humor negro e cinefilia pop. O vampiro atravessa calçadas de madrugada e letreiros; o corpo magro do poeta parece impresso em negativo. Em Teresina, ele realiza “Terror da Vermelha”, curta de orçamento mínimo, carta inquieta à cidade de origem; o filme circula por cineclubes e mostras independentes durante anos. O cinema não é um hobby; é a mesma energia de aproximar o que o discurso oficial prefere manter separado, com a câmera procurando ângulos interditados.
No jornalismo, o combate vem informado pela rua. Entre 1971 e 1972, ele assina a coluna “Geleia Geral” no jornal “Última Hora”, diário fundado em 1951, no Rio, por Samuel Wainer, com apoio político de Getúlio Vargas; o jornal popularizou a fotografia em destaque, a linguagem direta, a diagramação moderna e uma rede de edições em várias capitais, tornou-se alvo das campanhas da UDN e de Carlos Lacerda e, depois de 1964, passou por intervenção e mudanças de controle, mantendo circulação e peso no debate público. Ali, ele escreve sobre cinema marginal, discute direitos autorais da canção e arrisca leituras que desafiam consensos, em notas enxutas que encostam no poema. A página tem o ruído material do período: os linotipos, as provas cortadas pela censura, a urgência de fechar a edição. Antes disso, ele ronda outras redações cariocas, aprende pauta e prazo, descobre a frase que entra na orelha e não sai. Naqueles anos, prisões e exílios redesenham a vida cultural; nas colunas, porém, o país não vira alegoria. Vira ritmo e matéria bruta.

No centro do seu território poético, um poema funciona como senha. “Cogito” não pede ornamento; abre com “eu sou como eu sou”, pronome pessoal intransferível, e instala uma voz que não solicita legitimação. O texto opera em verso livre e cortes secos; a sintaxe carrega a afirmação e a fissura. Publicado postumamente em “Os Últimos Dias de Paupéria”, em 1973, o poema ganha a sala de aula, as antologias e as leituras públicas. No clima de vigilância da época, essa primeira pessoa não é um gesto íntimo apenas; é um ato de presença. Não é slogan; é carpintaria. A mão de Torquato busca a medida exata, recusa o floreio e corta. O efeito é de permanência.
Depois da morte, a obra se reagrupa em papel e memória. Em 1973, Waly Salomão organiza “Os Últimos Dias de Paupéria”, volume que reúne poemas, manifestos e artigos, desenhando um autorretrato em estilhaços, com a vida como laboratório e a escrita como risco. Décadas depois, “Torquatália” surge em dois volumes e dá lastro editorial ao que sobrevivia disperso: um tomo reúne poesia e prosa breve; outro recolhe colunas, entrevistas e materiais de trabalho, abrindo o arquivo ao leitor. Em paralelo, a revista-livro “Navilouca”, organizada e editada por Waly Salomão e Torquato Neto, cristaliza a imaginação de início dos anos 1970 em edição única, com montagem gráfica, poesia, artes visuais e colagens; circula em pequenas tiragens e acervos, ponte entre a vanguarda e a cultura pop. Do mito ao fichário, essas edições fazem a passagem que permite ler o conjunto sem perder a faísca.
Há ainda o breviário de ideias do movimento, o ensaio “Tropicalismo para Principiantes”. Escrito no calor de 1967-1969, quando os festivais de música e o álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” redesenham a vitrine da canção, o texto propõe uma chave de leitura do país. Contra a pedagogia do bom gosto, convoca a antropofagia de Oswald, a colagem como regra e a mistura deliberada de guitarras elétricas, jingles de publicidade, chanchada e canção de raiz. O programa é simples de dizer e difícil de executar: assumir tudo o que o Brasil pode dar — palmeiras e antenas, brega e sublime — sem pedir absolvição. Não como capítulo encerrado, mas como prática de sobrevivência estética. O ensaio circula em jornal e, mais tarde, ganha edição em livro.
Do ponto de vista biográfico, tudo parece rápido demais; entre 1968 e 1972, a vida corre como uma edição apressada. Convém desconfiar do mito do meteoro quando ele encobre o trabalho. Torquato lê com fome, reescreve com obsessão e transforma conversas em exercício crítico. A cidade oferece a mesa e o material: os estúdios onde as letras passam por mais de uma versão antes de entrar no microfone, os cineclubes que testam o olhar quadro a quadro, as redações que obrigam cortes e títulos de última hora. O que nele parece espontâneo nasce de convivência concreta com compositores como Gilberto Gil e Caetano Veloso, com o poeta Waly Salomão e com o cineasta Ivan Cardoso; nasce do trânsito entre a canção, a coluna e o curta. Em vez de “poeta maldito”, é mais justo vê-lo como o articulador de uma sensibilidade que prefere o risco ao conforto e o desconcerto ao acabamento, alguém que organizou afinidades para produzir curto-circuitos.
A madrugada é de 10 de novembro de 1972. No Rio de Janeiro, um dia depois de completar 28 anos, ele está em casa. A cidade diminui o barulho; por dentro, a vigília chega sem aviso. A porta está fechada; na cozinha, o silêncio; o cheiro começa a se espalhar. Ele abre o gás. O ato é simples e irreversível. Lá fora, as ruas estão vazias; lá dentro, o relógio prossegue como se nada soubesse. De manhã, o dia não espera: a casa acorda, a notícia sai do âmbito doméstico para o mundo das redações, dos telefones e dos prazos. O registro é seco, como pede o jornalismo: suicídio, no Rio, no dia seguinte ao aniversário.
A imagem final costuma devorar o resto; não deveria. O que permanece, quando o dia passa, são os gestos que se recusam a morrer: as colunas que acenderam arestas, as canções que ainda ferem, o poema curto que cumpre o que promete, o rosto que volta em fotogramas. Décadas depois, documentários e mostras devolvem a figura à conversa pública; “Torquato Neto — Todas as Horas do Fim”, de 2017, recompõe a trajetória com vozes, papéis, fita magnética e a insistência dos arquivos. A vida cabia em pouco tempo; a obra não coube nele.
O paralelo com Rimbaud é um espelho fácil. Juventude, estrondo e abandono servem para medir temperatura; não explicam a construção. A de Torquato é brasileira até a medula, moderna por necessidade e por ouvido. “aqui é o fim do mundo”, em “Marginália II”, não soa como rendição; soa como diagnóstico, seguido de “aqui, meu pânico e glória”, a convivência tensa que define a época e define o que ele escreveu. A lição possível não é romântica: em vez de heroísmo, trabalho; em vez de pose, língua afiada.
O país que ele enxergou, entre cabos e palmeiras, permanece com outras máscaras. O legado não é apenas um repertório de canções; é uma disciplina informal da mistura: aproximar o que o bom gosto separa, cortar a solenidade e experimentar sem pedir desculpa. Usar o jornal como oficina, o poema como instrumento e o palco como proveta. Voltar a ele, meio século depois, é reencontrar um impulso de invenção que não envelhece. Há, na sua obra, uma confiança rara: a de que a linguagem ainda pode abrir portas que a moral tranca. Essa confiança não é otimismo. É coragem em estado de trabalho.