Há alguns anos, Felca gravou um vídeo para o seu canal no YouTube que viralizou na internet. Em “testei a base da virginia”, ele avalia o cosmético vendido por Virgínia Fonseca — a maior influenciadora digital do Brasil. Com a cara empapada de maquiagem e trejeitos bem-humorados, o youtuber debate-se em desespero, incomodado com o produto que derrete e escorre sobre seus olhos.
Abstraindo-se a comicidade da situação, o que Felca estava a fazer ali era um tipo de denúncia. Colocando-se no papel de consumidor, ele tentava demonstrar que, talvez, a “base da Virgínia” não tivesse a qualidade propagandeada pela influenciadora nas redes sociais.
O vídeo da “base da Virgínia” chamou atenção para o talento de Felca para o humor. Um humor insólito, marcado pela esquisitice da personagem: um jovem tímido, que anda encurvado e com os ombros caídos, o corpo alto e muito delgado, a exibir cabelos longos sobre uma tez pálida — própria de quem não costuma sair muito de casa.
Fugindo ao padrão de outros influenciadores que habitam a economia da atenção das redes sociais, Felca não tenta “vender” para o público do seu canal uma vida de consumo sem limites e ostentação (carros luxuosos, casas com piscina, festas e “pegação” etc.). Nos seus vídeos, ele pinça temas do cotidiano, comentando-os com seu senso de humor peculiar.
Em meio a gracejos, seus comentários irônicos desvelam um tipo de sensibilidade social que é rara entre influenciadores. No palco da internet, o mais comum é ver jovens que se deixam deslumbrar pela fama e dinheiro conquistados quase instantaneamente com a produção de conteúdo para alimentar as redes sociais.
Com o passar dos anos, Felca amadureceu e deu novos rumos ao seu canal no YouTube. Ele iniciou uma série de entrevistas no “sofá do Felca”, revelando uma habilidade — até então ignorada — de entrevistador competente. Paralelamente, lançou um quadro de “vai dar namoro?”, com o objetivo de formar casais entre jovens “encalhados” — quase como se fosse uma espécie de Silvio Santos da geração TikTok.
Essas iniciativas mostraram que Felca, mais do que um intérprete bem-humorado do cotidiano, era sobretudo um grande comunicador.
Carismático à sua maneira, a fama do youtuber aumentou com o tempo. Uma legião crescente de jovens passou a tê-lo como um referencial de entretenimento e informação. O nome dele se consolidou como um dos maiores influenciadores da internet brasileira.
O que há de mais fascinante na trajetória do Felca, até aqui, é a sua coragem de abdicar da neutralidade. Deixando de lado a postura típica do influenciador que se omite diante dos problemas do seu tempo — e só lembra das questões sociais quando elas se mostram úteis para a promoção da imagem de “bom moço”, bem ao gosto das marcas -, ele passa a usar o seu canal no YouTube para enfrentar assuntos polêmicos da sociedade.
Diante do crescimento das apostas e jogos online no Brasil, Felca foi uma voz estrídula na denúncia dos males do vício em jogos. Rompendo com a lógica capitalista das redes, na qual famosos cedem suas imagens para fazer “publis” de “bets”, Felca não só recusou esses contratos — que rendem milhões de reais aos aderentes — como ainda utilizou sua visibilidade para denunciar as casas de apostas. Isso o levou, inclusive, a entrar numa crítica pública à atuação de Virgínia Fonseca nas redes, famosa por persuadir seus seguidores a gastarem com “bets” e “jogo do tigrinho”.
Agora, em agosto de 2025, Felca surpreende mais uma vez. Em seu canal no YouTube, ele publica um vídeo bombástico, que detalha uma denúncia chocante: a sexualização de crianças e adolescentes em vídeos monetizados nas plataformas digitais.

Em formato de minidocumentário, o vídeo, intitulado “adultização”, sublinha exemplos de pais e influenciadores que ganham dinheiro à custa do fim precoce da infância na internet. Um dos nomes citados é o de Hytalo Santos, que é mostrado como o responsável por criar um “reality show” de “pegação” entre crianças. Seguindo o modelo do infame “De férias com o ex” — um programa de baixíssimo nível da MTV, no qual os participantes são confinados em uma casa para beber, transar e brigar —, os menores, todos no começo da puberdade, são instigados a discutir sobre relacionamentos e trocar beijos. Também falam sobre “ficar”, sobre “ter crush”, sobre “perder a virgindade”.
O documentário prossegue. Outro caso chocante é revelado: Caroliny Dreher, uma adolescente que, aos 11 anos de idade, começou a gravar vídeos inocentes de dancinhas para a internet. No entanto, à medida que a garota cresceu, e seu corpo começou a ganhar mais formas, ela transitou para a produção de conteúdos cada vez mais sensuais, com destaque para danças em trajes minúsculos. Segundo Felca, tudo sob o incentivo da própria mãe de Caroliny, que explorava comercialmente o corpo da filha sexualizado na internet.
Os fatos apresentados em “adultização” são perturbadores. E repercussão nacional do vídeo, visto por milhões de pessoas no YouTube, lança luz sobre um fato gravíssimo: a dinâmica das relações de exploração, dentro do sistema capitalista, aplicadas ao corpo sexualizado de crianças e adolescentes na internet.
Obviamente, esse tipo de conteúdo só é possível pela conivência das plataformas digitais. Enquanto as redes sociais não forem regulamentadas no Brasil, elas continuarão a funcionar sob a dinâmica do livre mercado capitalista, para o qual tudo o que importa é o acúmulo de capital. A bem dizer, as “big techs” continuarão a visar ao lucro, mesmo que, para atingi-lo, precisem sacrificar a infância dos meninos e das meninas ingenuamente explorados nos vídeos monetizados. Sem uma legislação que imponha responsabilidade civil aos mantenedores desses sítios na internet, o algoritmo das redes continuará a “legislar”, ditado as regras do “tribunal da internet”.
Nesse sentido, a coragem do Felca precisa ser exaltada. Graças ao empenho dele, todo um esquema de sexualização de crianças e adolescentes na internet foi exposto. Como resultado direto do minidocumentário “adultização”, o youtuber pautou a opinião pública do País e trouxe a lume o fim da infância na internet.
Felca poderia ter-se restringido à sua atividade rotineira. Com seu carisma e bom humor, poderia seguir o roteiro trivial dos influenciadores, omitindo-se frente aos problemas sociais do seu tempo. Uma postura que lhe pouparia das ameaças de morte que ele está a sofrer neste momento.
Mas Felca decidiu usar seu talento, como comunicador, para enfrentar temas relevantes para a sociedade brasileira. Seu vídeo-denúncia da exploração sexual de menores é urgente e necessário. Ele certamente ajudará a prevenir novos casos de crianças sexualizadas precocemente na internet.
Em meio a tantos influenciadores omissos e alienados, que tudo fazem por dinheiro e têm a mente vazia como um tronco oco, é admirável a coragem de quem está disposto a abrir mão da neutralidade, sacrificando própria paz, em defesa de um tema tão importante para toda a sociedade brasileira, tal qual a proteção da infância e da dignidade de crianças e adolescentes.