O protagonista, identificado apenas como XXXX, é menos uma figura do que uma função, uma engrenagem que aprendeu a girar sem atrito na maquinaria do tráfico londrino. Daniel Craig o interpreta com uma contenção quase clínica, mas não sem a fissura ocasional de humanidade. O filme se recusa a explicar-lhe o passado, e é justamente dessa omissão que nasce parte de sua densidade: há algo de cuidadosamente editado na imagem que ele projeta, como se o próprio nome fosse uma informação classificada. J.J. Connolly, autor do romance original e do roteiro, constrói o personagem como um anti-herói à beira da aposentadoria voluntária, um operador que sonha em sair ileso de um negócio que consome seus praticantes de dentro para fora. Não há aqui a narrativa de ascensão meteórica nem a ruína melodramática; há o terreno plano e instável de quem opera sob a premissa de que é possível transitar pela criminalidade com higiene cirúrgica. Vaughn, no entanto, não se contenta com a ilusão de estabilidade e, cedo, coloca o protagonista diante de uma incumbência que desfaz o equilíbrio: resgatar a filha de Eddie Temple (Michael Gambon), o homem que ocupa o topo invisível da hierarquia.
A missão, dada por Jimmy Price (Kenneth Cranham), é apenas a primeira fissura. Em paralelo, um roubo de um milhão de libras em ecstasy da máfia sérvia ameaça desencadear uma guerra. Duke (Jamie Forman), um subordinado de Price, precipita o conflito, e cabe a XXXX mediar uma situação que não admite mediadores. O que poderia ser uma trama paralela se encaixa como pressão adicional, corroendo as margens de manobra do protagonista. Vaughn conduz a narrativa com atenção ao gesto e à pausa, evitando o espetáculo como motor principal. Há violência, mas ela não é o ponto; é o eco. O foco recai sobre o modo como um homem negocia sua permanência e sua retirada num tabuleiro onde nenhuma peça é realmente neutra. Londres, mais que cenário, é presença física: ruas estreitas, luz filtrada, interiores onde a elegância é menos um gosto que uma blindagem.
A escolha por não nomear o protagonista alinha-se a outras obras contemporâneas do gênero, como “Drive” (2011) e “Wheelman” (2017), mas Vaughn afasta-se da abstração estética desses filmes. Em “Nem Tudo é o que Parece”, o anonimato não é um recurso poético, mas um mecanismo de sobrevivência. Craig o encarna com um distanciamento calculado, revelando, apenas em lampejos, a fragilidade de alguém que talvez já não creia na própria estratégia. Sienna Miller, como Tammy, insere um eixo de desejo que não se desenvolve em romance pleno, mas em possibilidade. A presença dela é mais disruptiva que consoladora: oferece ao protagonista uma alternativa à inércia de seu mundo, mas também o distrai do cálculo frio que o mantém vivo. Na última cena, esse desequilíbrio cobra seu preço, e o filme, com precisão cruel, recusa qualquer fechamento redentor.
O título original, “Layer Cake”, sugere camadas de poder e aparência, uma arquitetura social onde cada nível esconde outro mais denso e perigoso. A tradução brasileira opta por um enigma mais direto, “Nem Tudo é o que Parece”, que preserva o espírito do engano, mas perde a metáfora estrutural. Essa diferença ecoa na experiência do espectador: em inglês, a história se percebe como desmontagem paciente de uma construção; em português, como desvelamento súbito. Vaughn, em seu primeiro longa, demonstra disciplina visual e sensibilidade para o ritmo interno da cena. O uso da música é pontual, quase sempre para acentuar a ironia, nunca para ditar a emoção. O elenco, coeso, opera numa faixa de atuação que privilegia o subtexto sobre o gesto explícito. Gambon constrói um Temple que nunca precisa levantar a voz para impor domínio; Cranham, como Price, exala a ambiguidade de um intermediário cujo poder depende da instabilidade que alimenta.
Há momentos em que as subtramas ameaçam dispersar a atenção, o conflito com a máfia sérvia, por exemplo, poderia diluir-se no excesso de ramificações. Mas, ao final, cada linha se revela como parte de um tecido maior, cujo objetivo não é resolver a vida de XXXX, e sim estreitar-lhe o cerco. Esse efeito se alcança porque o filme compreende que o crime, no cinema, é menos interessante como sequência de ações do que como espaço de decisões irrecuperáveis. O olhar de Vaughn é clínico na observação desse processo. Não há pressa em mover o protagonista de um ponto a outro; há, sim, interesse em registrar a hesitação, a leitura de sinais, a escolha de palavras. A tensão se constrói na diferença entre o que se diz e o que se entende, entre a promessa feita e a que realmente se cumpre. É nesse intervalo que “Nem Tudo é o que Parece” afirma sua força, um thriller que prefere a engenharia silenciosa ao clímax ruidoso, que entende que o destino de um homem pode selar-se num instante que, para outros, passaria despercebido.
★★★★★★★★★★