Havia um gesto imaginado: Stephen King diante de Dostoiévski entregando-lhe uma pequena pilha de livros. Não para convertê-lo a nada, mas para provocar. É uma cena improvável e fácil de sustentar por alguns segundos. O escritor americano, marcado por monstros e assombrações, estendendo obras que lidam com outra espécie de sombra. “Meridiano de Sangue”, de Cormac McCarthy, não precisa de fantasmas para ser assombroso. É um romance de violência metódica e seca, que força a olhar o mal sem cortina. King talvez quisesse mostrar ao russo que a brutalidade mais duradoura é aquela que não se explica. Ao lado dele, “2666”, de Roberto Bolaño, estende a sensação de vazio a um território difuso: crimes sem rosto, narrativas que se cruzam e se afastam, um mal que não se anuncia e se infiltra. Dostoiévski, acostumado a mergulhar na consciência de um assassino, encontraria aqui uma multiplicidade de consciências fragmentadas. “Kokoro”, de Natsume Sōseki, seria o contraponto. Quase nada acontece na superfície, mas por baixo a culpa e a solidão corroem com a mesma força de qualquer tribunal ou confissão pública. King, que conhece o efeito do silêncio, entregaria esse livro como sugestão de que o terror também se constrói no não dito. “O Reino”, de Emmanuel Carrère, traria outro tipo de inquietação: fé e dúvida em constante atrito, a investigação sobre a origem de uma crença como se fosse um suspense. “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”, de Svetlana Aleksiévitch, completaria o conjunto. Não há ficção ali, mas o testemunho cru de quem viu a guerra e guardou na memória imagens que não cabem em discursos oficiais. Seria o presente mais desconcertante: uma prova de que a realidade pode ser mais insuportável do que qualquer pesadelo inventado. A escolha dos cinco não seria um gesto de cortesia, mas de desafio. Um convite para pensar de outro ângulo sobre aquilo que King e Dostoiévski partilham, o interesse pelo que se esconde na alma humana quando ela é posta diante do irredutível.

Entre a autobiografia e a investigação histórica, a narrativa retorna às origens do cristianismo, acompanhando de perto as figuras de Paulo e Lucas, não como ícones intocáveis, mas como homens situados em seu tempo, com dúvidas, ambições e contradições. Carrère mescla relato pessoal e pesquisa, assumindo seu próprio passado de fé e sua posterior perda, para examinar como narrativas fundadoras moldam a visão de mundo. Não se trata de refazer a história, mas de interrogá-la, colocando em primeiro plano a fragilidade das certezas e a força da crença. Stephen King escolheria este título para Dostoiévski pela capacidade de transformar a fé em um objeto de suspense intelectual. Tal como em suas próprias obras, King entende que o medo e a esperança muitas vezes caminham juntos; aqui, porém, o medo é o de perder o sentido, e a esperança, a de encontrá-lo de novo. Para Dostoiévski, cuja obra é atravessada por debates sobre redenção e transcendência, o livro seria um convite a repensar as bases emocionais e racionais da espiritualidade. Carrère não oferece respostas fechadas, mas uma narrativa que se move entre a investigação e a confissão, abrindo espaço para que cada leitor e cada consciência construa suas próprias conclusões. É nesse espaço de incerteza que King e Dostoiévski poderiam dialogar mais intensamente.

Dividido em cinco blocos narrativos que se entrelaçam com a precisão e o mistério de um quebra-cabeça incompleto, o romance atravessa continentes, gêneros e tempos históricos para convergir na fictícia Santa Teresa, onde assassinatos de mulheres permanecem insolúveis. A investigação de acadêmicos sobre um escritor recluso, o mergulho no submundo do jornalismo e as jornadas pessoais que tangenciam esse epicentro compõem um panorama da violência contemporânea. Bolaño recusa explicações únicas ou soluções narrativas fáceis: o mal aqui é difuso, sistêmico e, muitas vezes, invisível. É precisamente essa recusa a respostas definitivas que Stephen King valorizaria ao entregá-lo a Dostoiévski. Enquanto King constrói terrores concretos e sobrenaturais para tensionar seus personagens, “2666” mostra que a ausência de sentido pode ser igualmente aterradora. Dostoiévski encontraria, nas múltiplas vozes e perspectivas, um campo fértil para explorar a responsabilidade individual diante de um mal que não tem rosto único. A obra sugere que a literatura não pode, talvez, eliminar o horror, mas pode expô-lo de modo tão amplo que ele se torna impossível de ignorar. É essa amplitude de olhar, combinada com a tensão narrativa e a complexidade moral, que transformaria o livro num presente inquietante, unindo a compulsão de King pelo suspense à obsessão dostoievskiana pela consciência em crise.

Construído a partir de dezenas de entrevistas, o livro dá voz a mulheres soviéticas que participaram diretamente da Segunda Guerra Mundial, desde a linha de frente até funções de apoio. Os relatos, muitas vezes suprimidos pela narrativa oficial, emergem aqui sem filtro heroico: há dor, coragem, trauma e também contradições humanas que desafiam qualquer molde ideológico. A estrutura polifônica cria um retrato de guerra que é, ao mesmo tempo, coletivo e profundamente íntimo. Stephen King veria nesse coro de vozes uma manifestação do horror real, não o fabricado por monstros ou entidades, mas aquele inscrito na experiência humana sob extremo. Para Dostoiévski, a obra serviria como um espelho social e moral, revelando até onde a compaixão e a resistência podem ser levadas quando a vida está em permanente estado de exceção. King entenderia que esses testemunhos têm o poder de provocar o mesmo desconforto que suas ficções mais sombrias, mas com a autoridade irrefutável do vivido. O presente, nesse caso, não seria apenas literário, mas ético, oferecendo ao mestre russo um mosaico de almas forjadas pela guerra, cada uma sustentando a tensão entre sobrevivência e humanidade, entre esquecer e lembrar.

No coração árido da fronteira entre Texas e México, um garoto anônimo se vê arrastado para a brutalidade de uma gangue de caçadores de escalpos, onde a morte e a crueldade se tornam não apenas presença constante, mas a própria gramática do mundo. A paisagem, descrita com a clareza febril de quem conhece o deserto físico e o deserto moral, desfaz qualquer fronteira entre vítima e algoz. Aqui, o mal não é um acidente: é uma força impessoal, tão inevitável quanto a poeira e o sol, impondo-se sobre todos. É justamente essa percepção de que a violência não precisa de justificativas sobrenaturais para ser absoluta que Stephen King veria como um presente provocador para Dostoiévski. O romance, despido de concessões, oferece a visão de um universo onde a consciência humana é testada pela ausência de sentido e pela presença constante do horror, sem que a narrativa abandone a intensidade lírica e a atenção às escolhas individuais. Para King, acostumado a explorar monstros internos e externos, e para Dostoiévski, mestre em dissecar as contradições da alma, esta jornada seria um território comum e, ao mesmo tempo, um desafio: compreender a sobrevivência quando nada, nem mesmo a esperança, parece resistir.

Ambientado no Japão da era Meiji, o romance acompanha a relação entre um jovem estudante e o enigmático “Sensei”, marcada por confidências, silêncios e um passado que pesa mais do que qualquer palavra. A trama se constrói em torno de gestos contidos e conversas veladas, revelando lentamente o peso da culpa, da solidão e do isolamento em um momento de transição cultural e moral. Não há violência física explícita, mas a intensidade psicológica é quase palpável, transformando cada encontro em um campo minado de memórias e segredos. Stephen King veria aqui um contraponto essencial para Dostoiévski: a demonstração de que o terror mais profundo pode residir na intimidade das relações e naquilo que não é dito. Onde King cria atmosferas carregadas por forças sobrenaturais, “Kokoro” opera no registro do silêncio e da omissão, provocando inquietação pela espera e pelo não revelado. Para Dostoiévski, seria uma aula de contenção e de como a narrativa pode condensar dilemas morais sem necessidade de grandes gestos dramáticos. O livro, ao desvelar lentamente as motivações de cada personagem, oferece ao leitor e ao hipotético presenteado russo a experiência de penetrar na alma humana através de portas que rangem pouco, mas que, uma vez abertas, revelam labirintos emocionais tão complexos quanto os de qualquer tribunal ou cela.