Todos nos deparamos com uma infinidade de vezes em que é fundamental que abandonemos o caminho pelo qual íamos gostosamente nos perdendo e refaçamos o percurso, do começo, se necessário. Questões que tocam o mais fundo de nossa consciência, as mais íntimas, as que se depositam nos lugares mais recônditos, as dúvidas, as incertezas, os dilemas existenciais, sempre nos assombrando nos momentos em que precisávamos de toda a serenidade, as tantas inquietudes que tornam a vida um desafio quase inexpugnável: sobram-nos razões para que nos creiamos a espécie mais desventurada sob o sol. A despeito do que possamos querer, o tempo, senhor da razão e tudo quanto há de inexplicável no mundo, avança sem trégua, não para nunca, não admite ser desapontado e, caprichoso, tem suas próprias vontades e seus planos para o homem. Cris Johnson, um mágico de Las Vegas, sente-se privilegiado por ter o dom de burlar o tempo, até que o FBI entra no circuito; é esse o ponto em que “O Vidente” muda de um enredo previsível para uma história saborosa, até genial em dados lances. Especialista nessas tramas, Lee Tamahori faz de seu filme um jogo de gato e rato conduzido por um anti-herói que cativa aos poucos, um dos predicados do bom roteiro de Paul Bernbaum, Gary Goldman e Jonathan Hensleigh, inspirado no conto “The Golden Man” (“o homem de ouro”, em tradução literal; 1954), de Philip K. Dick (1928-1982) para a revista “If”.
Saber o que acontecerá no futuro imediato pode parecer um dom, mas revela-se uma maldição para Cris, que tenta conservar alguma espontaneidade. A cada visão, o peso avassalador desse talento sufoca o prazer das pequenas surpresas e transforma escolhas simples em dilemas invencíveis, e qualquer decisão que ele venha a tomar nunca é natural, e vem à luz como um golpe seco. Cris, ou Frank Cadillac, como é conhecido nos inferninhos de Cidade do Pecado, apresenta-se para uma plateia vazia, mas ele não se abala. Dirige-se a uma mesa onde estão um homem coreano e sua jovem esposa — que ele faz questão de perguntar se é a filha do sujeito —, leva a moça até o palco, elogia-lhe o colar de rubis e garante que a joia cairá do colo dela em instantes, numa taça que ele já tem ali ao lado. É óbvio que os três fazem parte de uma equipe, e os números manjados que Frank Cadillac tira do bolso do velho paletó não impressionam ninguém com mais de dois neurônios, muito menos Callie Ferris, uma investigadora do FBI com vasta experiência em reconhecer malandros. No saguão de jogos de um cassino, Cris fatura quase dez mil dólares em alguns minutos, usando sua aptidão e antevendo os lances da roleta e o sobe e desce do baralho. Quando vai resgatar o dinheiro, ataca um ladrão, toma-lhe a arma e é caçado como se fosse o verdadeiro criminoso. Mas Ferris está prestes a comprovar que o ilusionista tem muito mais a lhe oferecer.
Tamahori amarra a longa introdução ao que de fato interessa, e coloca Cris e Ferris juntos na missão mais difícil que alguém poderia receber. Em caráter ultrassecreto, a detetive toca uma força-tarefa que corre contra o tempo a fim de impedir a detonação de uma bomba nuclear sobre Los Angeles, e coage Cris Johnson a auxiliá-la em seu plano, sem dar-lhe ouvidos quando ele avisa que só é capaz de antecipar-se aos acontecimentos em até dois minutos. Seguem-se os conflitos de praxe nessas ocasiões, a policial adapta suas estratégias a esse detalhe e o filme desdobra-se em sequências ágeis, nas quais a tensão oscila, jamais deixando de permear a conduta dos dois. Nicolas Cage e Julianne Moore disputam o olhar do público, com tempo de tela equivalente, até que desponta a figura de Liz Cooper, a bela namorada de Cris. Jessica Biel dissipa um tanto a névoa de incerteza e caos que junta o namorado e sua algoz, mas também não faz feio nas cenas em que o atormentado prestidigitador arrisca tudo para livrar-se do jugo de Ferris e, quem sabe, ser mesmo o salvador do mundo. A imagem de uma mente fragmentada é o que fica de mais concreto em “O Vidente”, um narrativa sobre o desmantelamento do poder e da própria natureza humana.
★★★★★★★★★★