Com Brad Pitt, o melhor filme de ação e mistério dos últimos 3 anos já está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Com Brad Pitt, o melhor filme de ação e mistério dos últimos 3 anos já está na Netflix

Sob a direção de David Leitch, “Trem-Bala” adapta o romance de Kōtarō Isaka e faz da contradição um programa estético. O cartunesco é deliberado, a violência é estilizada, e os apelidos infantis deslocam a trama do realismo estrito para uma fábula de ferro e eletricidade. Leitch, ex-coordenador de dublês com assinatura consolidada em “Atômica” e “Deadpool 2”, domina o corpo em movimento e o humor físico que estoura como piada e como golpe. Aqui, aplica o repertório a um espaço único e aparentemente limitador, o trem, e extrai dele liberdade, não confinamento.

A fotografia de Jonathan Sela explica parte do contínuo choque sensorial. Corredores tornam-se tubos de luz; janelas viram aquários digitais; o exterior é textura em trânsito. O interior é palco. A câmera alterna movimentos que respeitam o desenho do trilho com cortes secos que sabotam o conforto, criando uma pulsação que combina espetáculo e claustrofobia. A saturação cromática, o brilho das superfícies e as sombras calculadas conferem identidade a cada vagão. Não é vitrinesco: é um caderno de cenários que dialoga com a coreografia das lutas e com o timing da comédia.

Há um prazer específico em ver brigas coreografadas para o espaço estreito. A sequência do vagão silencioso condensa a proposta. Objetos comuns viram armas; gestos mínimos precipitam desastres; a etiqueta ferroviária atrita com a brutalidade do confronto. O riso nasce do descompasso entre a regra de civilidade e a necessidade de sobrevivência. A edição de Elísabet Ronaldsdóttir encontra a batida que impede a previsibilidade sem quebrar a legibilidade. O humor não interrompe a ação; adensa a percepção do risco.

Joaninha, interpretado por Brad Pitt, move-se por negação. Quer evitar armas, quer passar ileso, quer que o acaso pare de lhe cuspir ironias. A atuação investe em cansaço arejado, um tropeço elegante que sabota a ideia de invencibilidade. Em lugar de eficácia superlativa, Pitt oferece incompetências controladas; desmonta a figura do herói blindado e a substitui por um corpo que tenta pacificar um universo regido por colisão. Cada tentativa de apaziguamento produz nova catástrofe. O azar, como dramaturgia, vira motor de situações que lembram a comédia física de outra era, tingida de sangue e vidro.

Se Joaninha encarna a ética possível do desarme, Tangerina e Limão, vividos por Aaron Taylor-Johnson e Brian Tyree Henry, apresentam a parceria como método. Profissionais com códigos, contagens e anedotas, transformam a conversa em mecanismo de diagnóstico e a violência em ofício. Limão lê o mundo pelo manual de um desenho infantil e, nesse delírio lúcido, enxerga melhor do que os cínicos disciplinados. Tangerina é técnico e de pavio curto. A dupla importa menos pelo subgênero de buddy movie do que pela humanidade que persiste apesar do prontuário. O filme observa ambos com afeto irônico, sem absolvições fáceis.

O codinome Príncipe, vivido por Joey King, injeta energia distinta. A personagem instrumentaliza uma aparência de fragilidade que não possui e manipula a expectativa alheia com cálculo gelado. Não é caricatura de subversão; é uso tático do estereótipo. Na cena em que confronta Kimura, pai devastado interpretado por Andrew Koji, emerge a espinha dorsal do filme: todos fingem ser outra coisa, e esse fingimento move a trama tanto quanto o trem. A máscara que funciona no imediato cobra preço mais adiante, e o roteiro tem paciência para recolher essas parcelas.

Hiroyuki Sanada atua como ancoragem moral, devolvendo dignidade ao gesto contido e contrastando com a grandiloquência cômica do entorno. Michael Shannon, antagonista de biografia amontoada em farsas e crueldades, completa um mundo regido por cores fortes e escolhas extremas. A vilania é operística e consciente do próprio exagero, porém assentada em lógica clara: poder como domínio da narrativa. Nesse espectro, racismo, misoginia e sociopatia aparecem como ferramentas dramáticas, sem conversão em sermão.

O texto de Zak Olkewicz condensa o romance e reorganiza relações com atenção ao efeito cênico. Importa menos a plausibilidade literal do macroplano do que o encadeamento de microacidentes que forçam encontros e deslocam alianças. A pasta prateada é um MacGuffin clássico. A cada parada, renova-se o motivo para seguir, e a elasticidade do roteiro faz as reviravoltas parecerem consequência, não trombeta. As coincidências existem, abraçam o cartum e, ainda assim, respeitam coerência interna: piadas retornam, objetos reaparecem, mordidas deixadas pelo acaso viram pistas.

Discute-se se a ambientação japonesa funciona como papel de parede para um produto ocidental. A crítica é pertinente; esta não é a ambição de retrato cultural. O filme opera como parque temático de humores e símbolos. O trem é mais maquete de ideias do que meio de transporte observacional. A opção tem custo, mas é honesta com o projeto. Nada promete realismo sociológico. Promete-se vertigem, desenho de impacto e humor encharcado de hemoglobina. Dentro dessa moldura, evita-se a exotização vulgar e prefere-se a abstração fluorescente.

O desenho de som organiza a presença física da ação. Golpes soam como estalos de madeira; facas cortam como zíperes; o ferro range em frequência que arrepia o ouvido. A trilha passeia por referências pop e acelera sem sequestrar a cena. Importa a sensação de peso de cada golpe, mesmo quando a encenação flerta com o cartum. Quando tudo derrapa para o grandioso nos minutos finais, a física do mundo se flexibiliza e a narrativa encosta no limite do pastiche. Ainda assim, a sequência conversa com a gramática do filme. A elegância do miolo é superior à catarse do fim. A força reside no corredor, nas tomadas que extraem do espaço mínimo uma variedade de soluções.

A montagem preserva a inteligibilidade quando a multiplicação de subtramas poderia dissolver o foco. Leitch filma como quem conhece o algoritmo do gag visual e, sobretudo, sabe quando cortá-lo. A sensação é a de um relógio que não perde o passo, mesmo quando simula descompasso. A vocação para o espetáculo não exclui a atenção ao detalhe: pequenos talismãs mudam de dono, de sentido e de função. Esses retornos alimentam a memória do filme e o protegem do consumo instantâneo.

Tematicamente, a sorte é metáfora preferencial. Joaninha crê estar amaldiçoado; outros veneram o mérito; alguns só fazem contas. O filme dispõe essas crenças como cartas de truco. O acaso não desculpa incompetência; lembra que técnica e azar convivem e que controle total é fábula. A tese inscreve-se no corpo do protagonista e confirma-se nas reviravoltas: o gesto que parece aleatório quase sempre estava plantado. Essa costura dá ao conjunto a respeitável sensação de projeto.

Participações relâmpago funcionam como troféus de reconhecimento, mas não desviam o eixo. A violência por vezes beira o grotesco; a graça, muitas vezes, é seca. A mistura raramente se equilibra tão bem em produções que se anunciam como entretenimento puro. Aqui, a alegria do artifício não anula o peso dos golpes. É uma ética de desenho animado aplicada com disciplina de cinema de ação.

“Trem-Bala” poderia cair em duas valas prontas: a colagem de piadas visuais sustentada por computação gráfica ou o realismo que sufoca o próprio espírito. Escolhe outra via. Assume a fantasia como motor e confere a ela a seriedade do planejamento meticuloso. Quando chega ao destino, sobram desequilíbrios e excessos, mas permanece a sensação de percurso bem traçado. O filme fica onde melhor funciona: um corredor acima do caos, uma piada antes do soco, um golpe que faz rir e doer.

Filme: Trem-Bala
Diretor: David Leitch
Ano: 2022
Gênero: Ação/Comédia/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Revista Bula

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