A estreia da Legião Urbana em 1985 foi com um disco de capa branca, austera e emblemática. A obra representa um marco histórico de uma virada cultural no Brasil. O país tentava reaprender a respirar após duas décadas de sufocamento. Pois a ditadura militar, enfim, dava lugar à redemocratização, com o nascimento de novos atores sociais. Mas, como toda transição, essa também é ambígua, entre a euforia e a frustração, o desejo de futuro e a herança pesada de um passado recente.
O disco da Legião é um ajuste de contas com o que fomos e uma indagação profunda sobre o que seríamos a partir daquele momento. No plano musical, o álbum surge em meio a uma mudança de guarda. A hegemonia da MPB, sustentada por décadas por nomes como Chico Buarque, Milton Nascimento e Caetano Veloso, cede lugar a uma linguagem mais jovem e direta. A influência não é mais a bossa nova ou o samba-canção, mas o pós-punk inglês, com pulsação crua, guitarras dissonantes e lirismo angustiado.
Renato Russo, líder do grupo, inscreve-se nesse movimento como uma figura singular. Seu canto devolve à canção popular brasileira um sentido de urgência. A diferença com a geração anterior está na linguagem nova marcada por uma poética de confronto e introspecção. Se antes predominou o que Marcelo Ridenti chamou de “romantismo revolucionário”, com suas grandes causas coletivas, nos anos 1980 o foco se desloca para a subjetividade e a crise do eu — sem, no entanto, abandonar a dimensão política.
O disco se conecta a seu tempo, ao trazer canções ao mesmo com um tempo íntimo, confessional e coletivo. Essa subjetividade em crise foi descrita por Christopher Lasch no livro “O Mínimo Eu”, publicado no final da década anterior, como marca da sociedade onde o narcisismo se tornou uma forma de sobrevivência. O disco da Legião é atravessado por esse espírito. As letras têm poucas certezas, não mobiliza utopias e não promete redenção. Trata-se de uma busca por entender a experiência do presente.
A primeira estrofe do álbum é emblemática: “Tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você”, na faixa de abertura “Será”. Um verso de origem inglesa, extraído da canção “Say hello, wave goodbye” do grupo Soft Cell, que já anuncia a afiliação internacional da banda. A apropriação é abrasileirada para dar conta da vida local.
Sai a MPB, entra o pós-punk inglês
“Será” é a canção-manifesto da incerteza. Embalada por guitarras secas e bateria marcada, ela abandona a sofisticação harmônica herdada do folk e do progressivo, anunciando uma nova sonoridade. A urgência do momento exigia isso. A mesma estética prossegue em “Dança”, faixa que intensifica o diálogo com o pós-punk. Aqui, o contrabaixo assume protagonismo, a bateria eletrônica dita o ritmo de um corpo inquieto. O foco é o afetivo, mas sem cair no sentimentalismo. Há um pulso tenso e nervoso.

“Petróleo do futuro”, terceira faixa, faz emergir a herança do punk. A letra menciona filósofos suicidas, arquivos apagados, documentos extraviados. É uma clara evocação à repressão da ditadura. Um mundo onde a informação é deletada. O passado é interditado pela sombra da Lei da Anistia. A canção “Ainda é cedo”, por sua vez, mergulha em um lirismo melancólico. É uma canção de amor, mas também de descompasso. Fala de um tempo que não chega e um desejo que não se realiza.
Na sequência, “Perdidos no espaço” revela uma juventude atravessada pela mídia, jogos eletrônicos e referências da cultura pop. É o retrato de uma subjetividade que se forma diante da televisão. A canção tem o nome da famosa série norte-americana, mas o que está em jogo ali é algo mais amplo. O sujeito está à deriva, sem mapas confiáveis, para navegar nesse mundo novo.
Para fechar o lado “A” do disco, “Geração Coca-Cola” se tornou um hino. Renato Russo ironiza a formação cultural da juventude sob os auspícios do consumo. Mas o faz num gesto ambíguo de crítica e apropriação. Há ecos (involuntários ou não) da antropofagia modernista e do tropicalismo, mas com uma nova moldura. A cultura de massa devora e ressignifica as formas de vida num país periférico. O rock inglês é ingerido, metabolizado e devolvido como identidade brasileira.
O lado “B” do disco amplia o inventário de experiências. “O reggae” fala da escola como prisão, ou seja, da educação como instrumento de opressão. Um retrato amargo de uma geração desiludida com as promessas institucionais, bem sintonizado com as temáticas e sonoridades do punk inglês. A faixa “Baader-Meinhof blues” cita o grupo guerrilheiro alemão para falar da impotência diante da violência do mundo e da necessidade de resistir. “Soldados” é a canção que mais diretamente dialoga com a ditadura militar, evocando imagens de repressão, solidão, alienação.
Princípio da esperança
“Teorema” retoma a estética punk, com sua poética do confronto direto. “Parece energia mas é só distorção/ E não sabemos se isso é problema”, diz a letra da canção. O disco se encerra com “Por enquanto”, uma das canções mais emocionais de Renato Russo. Aqui, o sujeito canta a despedida, o fracasso, mas também a tentativa de recomeço. É uma canção sobre recomeços, mesmo que falhos.
O modo de articular vivência íntima e angústia social também aparece, em outra chave, na literatura do período. Autores como Caio Fernando Abreu e Marcelo Rubens Paiva escreveram com uma linguagem nova, fragmentada, veloz e profundamente atravessada pela sensibilidade da época. É a mesma pulsação de desencaixe que encontramos nas letras da Legião. Um certo mal-estar com o presente e um medo silencioso de projetar o futuro do país.
O primeiro disco da Legião Urbana é um documento histórico e um gesto artístico de rara potência. Ele olha para trás (a ditadura, os traumas da repressão) para colocar um olhar à frente. Há nele o que Ernst Bloch chamou de “princípio da esperança”, ou seja, uma aposta, mesmo que frágil, no que virá adiante. Ainda que os anos seguintes tenham mergulhado o país na chamada “década perdida”, com frustrações econômicas e políticas, a década de 1980 foi, para a cultura brasileira, um tempo de descobertas e criação.
Mais tarde, já nos anos 1990, em sua fase final, Renato Russo vai revelar um outro estado de espírito. A esperança vai estar “dispersa” e esvaziada de certezas. Ele evoca a imagem da “esperança equilibrista”, título imortalizado por Aldir Blanc e João Bosco, mas a reconstrói sob outro prisma. Não mais como força que resiste à repressão da ditadura, mas como sentimento que se desfaz em meio à desorientação de um país perdido entre promessas e o esfacelamento de antigos ideais.